ARTICULISTAS

A Justiça é sempre justa?

Vera Lúcia Dias
veludi@terra.com.br
Publicado em 04/11/2013 às 15:01Atualizado em 19/12/2022 às 10:21
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Pensei muito antes de escrever este artigo porque não quero ser rotulada de defensora da impunidade e, muito menos, como alguém que não sabe compreender a dor da família que perde um filho jovem. Sei que esta perda provoca uma dor sem nome, um vazio que dificilmente se preenche independentemente da causa-mortis. Que fique claro, portanto, que não desconsidero a dor e desejo de justiça de uma família.

Uma notícia publicada na semana passada provocou-me muitas reflexões: A possível condenação de um ex-colega de trabalho, motorista do SAMU, com pena de dois a quatro anos, além de pagamento de indenização por envolvimento em acidente que resultou na morte de uma jovem, em setembro de 2009.

Fico pensando em quantos filhinhos de papai, ou mesmo “papis soberanos” alcoolizados provocam acidentes terríveis na calada da noite, e nunca os vejo condenados.  Se o são, não viram notícia de primeira página.

Matar por irresponsabilidade, com a cara cheia de cachaça em “rachas” entre moleques com seus carrões importados, no meu modo de pensar é muito diferente de acidentes provocados pela pressa de veículos que transportam prestadores de socorro. Entendo muito pouco ou quase nada da área do Direito, mas fico pensando se contextos e motivações tão diferentes são considerados num julgamento.

Não advogo que motoristas de veículos de resgate estejam isentos de cumprirem as leis de trânsito, mas, só quem já esteve no interior de uma ambulância sabendo que do outro lado tem alguém morrendo, compreende a angústia que é enfrentar o trânsito em horário de pico para chegar a tempo de salvar uma vida. Naquele sábado fatídico, as vítimas eram pai e filho (com necessidades especiais) acidentados em bairro distante.

Recordo-me com muita clareza, atuando como psicóloga do SAMU, que os efeitos psicológicos do acidente não foram exclusivos da família. Eles resvalaram também sobre uma equipe que existe para salvar e não para matar, ainda que para isso os samuzeiros corram risco de vida vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias do ano.

Não bastasse o mal estar interno provocado pelo acontecido, foram muitas as piadinhas de mau gosto, apelidos e rótulos com hostilidade explícita, carros dificultando propositalmente a passagem das ambulâncias, xingamentos no trânsito e por aí afora.

À época, tentamos expressar publicamente nossas condolências por meio de um artigo, mas, como era de se esperar, não fui compreendida e sei também que poderei não ser agora.

Não há nenhuma questão sem dois lados e eu me sentiria omissa, se apesar de compreender os direitos e a dor da família, não manifestasse minha preocupação com o motorista que também possui sua família.

O “réu” – que também poderia ter falecido no acidente – na minha avaliação de colega e coordenadora de serviço, tinha um comportamento irrepreensível. Íntegro, prestativo, responsável, pontual, assíduo, boa convivência, cumpridor de seus deveres e esforçado a ponto de ter se diplomado como técnico de enfermagem já na maturidade e agora, se condenado poderá passar a conviver numa mesma cela que ladrões, sequestradores, traficantes, assassinos, estelionatários e demais representantes da escória social, por um acidente ocorrido enquanto ganhava o seu pão.

Cela esta que dificilmente abrigará autores de acidentes provocados após as baladas noturnas...

Não posso deixar de examinar a questão com minhas lentes e fico imaginando as consequências da condenação para o réu-vítima e sua família e me indagand A justiça é sempre justa? O desfecho do caso seria o mesmo se o acidente tivesse sido provocado por alguém socialmente mais favorecido? Advogados de renome podem tornar um crime menos grave?

Em resumo, espero que tenha ficado claro que meu questionamento não está no fato da condenação em si, mas sim no contexto do acidente e na impunidade que todos nós conhecemos em acidentes com vítimas fatais provocados por diversão e busca de adrenalina.

Meu desejo é que doravante aqui na terrinha (como dizem alguns colegas colunistas) o desfecho deste caso estimule a justiça a levar para a prisão todos os motoristas que provocarem acidentes com vítimas, inclusive aqueles alcoolizados que usam seus veículos como brinquedinho em condições bem diversas das que aqui tratamos!

Vera Lúcia Dias

Mestre em Psicologia Clínica, Terapeuta das Perdas e Lutos e ex-coordenadora do SAMU de Uberaba

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