Sempre estava atento à sua herança genética, especialmente a obesidade. A luta acirrou sem efeito com idade, embora os seus índices de colesterol fossem aceitáveis pelos médicos. Mas era gordinho. Nasceu gordo. Quando bebê, era um bebezão bochechudo. Todos adoravam apertar as suas bochechas, até ficar de mau humor. As tias e a madrinha abusavam em carinho. Quando chegou a adolescência o que era fofura passou a ser preocupação. Nas festinhas ficava próximo à mesa de doces buscando um ângulo que a mãe não o visse. Comia escondido, e o sabor era outro. Dava-se bem com o corpo, quem andava com ele é que não gostava de vê-lo assim, tão gordinho e bem-humorado. Quando o puseram em spa, comeu as plantas que havia no corredor para os quartos. A samambaia predileta do proprietário virou ramas, as orquídeas eram vasos de lembranças, comeu tudo. No outro dia foi descoberto, trazia entre os dentes folhagens verdes. Antes, havia tentado fugir pulando o muro, mas sem êxito. No entanto, aquela atitude o descredenciou a ficar no local e, para o seu alívio, foi dispensado. Cresceu gordinho, lutando e atento à genética. Bem-humorado, fazia os amigos rirem com os seus casos. Certa vez, contou-nos, seu pai comprou um peru para ser servido na ceia de Natal. Não queria aqueles perus prontos e congelados. Quando chegou a sua casa viu aquele bicho no quintal, todo imponente e feio. Andava de um lado para o outro em elegância feminina. Porém, era uma ave feia, pensou, com aquele papo vermelho de penas de cores variadas. Aquelas eram de uma coloração preta, com castanha mais clara. E era macho, porque trazia um apêndice carnoso sob o bico, carúnculas. Essas aves caminham, mas, também, voam, disse seu pai a ele. Fique de olho e vai lhe dando um pouco dessa cachaça até embriagá-lo, porque, só assim, poderemos sacrificá-lo. Evódio ficou ali, bebia um tanto e dava outro tanto para o peru. No começo tudo foi difícil; pegar o bicho e depois deixá-lo quieto ao seu lado. Aos poucos a ave foi se acalmando e ficou ali deitada ao lado do Evódio, que alisava as suas penas e bebiam juntos. Evódio contava uns casos para a ave, ria das lembranças de quando criança, comia os docinhos escondidos, e agora estava ali fazendo uma nova amizade. Quando o pai chegou, foi logo para o quintal e encontrou os dois bêbados, cada um caído para um lado. Quando o pai quis executar o animal, Evódio não permitia e abraçava o animal, dizendo que ele era o seu amigo. Ninguém vai executá-lo, dizia indizível. Somos amigos. Não teve jeito, a genética não lhe permitia trair um amigo.