Era início dos anos 90 e havia muitos colegas de trabalho vindos da Argentina para o Brasil. A língua é parecida, a distância é (relativamente) curta, tudo na paz. De lembrar que, à época, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e os brasileiros ensinávamos aos novatos como lidar com a situação.
Lição valiosa: “As pessoas perderam a noção do dinheiro, que, aliás, à hora do almoço não vale o mesmo que ao café da manhã. Assim, sempre, mas sempre mesmo, peça desconto. Se não oferecerem desconto, peça algum. Se o preço já tiver alguma redução, peça mais. E não se sinta mal, está previsto; o vendedor sempre tem margem para isso”.
Vem, então, um colega daqueles lados e decide não trazer mudança, mas apenas alguns pertences pessoais. A esposa se encarrega de ir às compras, fazer um novo lar, com tudo novinho. Portanto, com a valiosa lição do sempre-pedir-desconto, ela vai à luta. Simpática, energética, proativa, ouve um preço e, sem pestanejar, rebate:
– “Diez por ciento? Por menos de quince por ciento, yo no transo contigo!”
Mais tarde, um professor de português a esclareceu sobre os vários sentidos do verbo “transar”, inclusive o mais corrente e popular, que não tem nada a ver com a transação comercial que ela tentava completar.
Conformada, ela levou na esportiva e ria da situação. Fazer o quê? E ainda contava a história dizendo que, ao chegar ao Brasil, ela “queria transar com todo mundo...”. Falando sério, foi um alívio entender o que se passava, já que ela sentia que havia algo estranho e não sabia explicar o quê.
Naquela época, dizia-se que o Brasil sofria o “efeito Orloff” (da publicidade da vodca, que dizia “eu sou você, amanhã”), com todas as mazelas econômicas infligindo-nos algum tempo depois da Argentina.
Agora, vemos tudo outra vez, com nossos hermanos sofrendo com o dragão (como chamávamos a inflação) que nos espreita, sedento. Em recente visita ao país vizinho, é imediato constatar a grave disrupção na vida do povo, que sofre cá embaixo com os delírios de uns “iluminados” lá de cima.
Impossível dizer que não se sabe o que vai acontecer, dependendo do caminho escolhido. Falando em imagens do inconsciente coletivo, isso já nem é “Orloff”, está mais para “murro em ponta de faca”. Pena que é o povo que sangra.
Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica
AnaMariaLSVilanova@gmail.com