E aconteceu. Na semana passada, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou o precedente estabelecido pelo caso Roe vs. Wade, restando esclarecido que o direito ao aborto não está presente na Constituição daquele país. Com essa decisão, o tema agora volta para os Estados e, o mais importante, para as casas legislativas, que são o lugar adequado para a discussão.
O juiz Clarence Thomas deixou claro que a decisão não se refere ao direito em si, mas, apenas, à definição de esta ser ou não uma questão constitucional. Brilhantemente escrito, o documento merece a atenção devida, seja pelo conteúdo, seja pela forma, de uma clareza solar. Que inveja desse sistema que funciona! Que inveja desse juiz que julga conforme a lei!
Além das vidas salvas, a consequência mais básica que virá daí é a volta da discussão. Se, lá atrás, se dizia que a proibição ao aborto era um ataque ao direito da mulher, agora, tantos anos depois, e com o desenvolvimento da medicina, já se sabe muito mais sobre o outro lado. E o feto? São duas as vidas diretamente afetadas, não cabe só falar de uma.
Algumas manifestações verdadeiramente aberrantes apareceram por aí. Num caso, uma mulher visivelmente grávida, presente numa dessas passeatas, deixou a barriga descoberta e escreveu “ainda não é humano” sobre o próprio ventre. Então, é o quê? Que espécie? Um alienígena?
Outra, mais radical, apareceu com dois filhos pequenos, um menino e uma menina, e um cartaz enorme: “não imponham isso a ninguém”. Como? Então, ela reconhece que são filhos aqueles cuja vida quer interromper em si?
Uma apresentadora de TV disse, mesmo, que os pais dela tiveram que arcar com o fardo de cuidar do irmão especial e que teria sido melhor que este tivesse sido abortado. Lembrete doloroso da origem de toda a discussão, muito mais ligada à eugenia do que ao direito de qualquer pessoa adulta.
Diz-se que nenhuma mulher quer fazer um aborto e que ela sofre muito quando “tem” que fazer. É a regra, na maioria das vezes, e é triste. A falácia é dizer que fazer um ato a contragosto, e sofrendo, é justificativa suficiente. Como se, ao dizer “sinto muito”, a questão estivesse resolvida. Situações extremas nunca terão soluções fáceis, mas a menos pior nunca poderá envolver interromper o curso de uma vida.
Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica
AnaMariaLSVilanova@gmail.com