ANI E INÁ

Abacaxi

ANI E INÁ
Publicado em 21/03/2023 às 20:17
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Em volta de uma mesa de refeições é sempre um lugar animado, acompanhado de debates, novidades e acontecimentos variados. A nossa não era diferente. Conversávamos sobre músicas, filmes, política e justiça. Uma mesa calma e agradecida pelos alimentos que ali estavam. Às vezes, não entendíamos nada sobre certos assuntos; papai falava para as paredes, mas aprendíamos que a justiça era muito importante. Ele gostava de ensinar como partir um abacaxi, sempre cortando de comprido. “Um enigma: comemos primeiro a parte doce e a ácida no final.” Mesmo sendo crianças, já éramos capazes de entender o que ele queria dizer.

​As primeiras e fortes injustiças que sentimos e vivenciamos foram na escola. Professor Leôncio Ferreira do Amaral chegava antes das sete horas, com sua pastinha e seus cabelos na brilhantina. Admirávamos o querido diretor. Talvez esse amor por ele é que até em nossas travessuras tínhamos seu apoio e sua admiração. Creio que, pelas festinhas na escola, em que éramos protagonistas, dançando em sincronia perfeita como se estivéssemos diante de um espelho ou, debaixo dos mangueirais, declamando versos com extrema interpretação. No dia da formatura, declamando O Milagre da Aparecida, de Adelmar Tavares, e Ani, Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias, fomos aplaudidas de pé, o que nos deixava cheias de vaidade e o diretor ia nos parabenizar.                     

​Como tudo não são flores, entre nossos queridos coleguinhas tinha um que sempre aparecia nas festinhas da escola, era bem bonitinho. Certo dia, ao sairmos, ele surgiu de trás de uma árvore, deu um beijo no rosto da Ani, ganhou de mim um empurrão e saiu correndo como corisco, gritando: “Eu já beijei uma! Agora, vou beijar a outra!”.

A sensação de sermos perseguidas e a violência das palavras nunca foram bem-vindas e perdemos a cabeça. Ele passou do ponto. Justiça seja feita, merecia uma coça, um soco, ou melhor, uma surra. Arquitetamos um plano e passamos a seguir Sabininho, o beijoqueiro. A brincadeira não ficou impune. Sabíamos onde ele morava. Ao sair de casa e afastar por dois quarteirões, eu de um lado e Ani do outro. Como batemos no Sabininho! Recebeu o que merecia. Era assim que resolvíamos nossos desafetos.

Quando a escola foi transferida para o prédio projetado por Oscar Niemeyer, adaptamos por demais à moderna sede pública e aos nobres professores. Houve um fato, porém, após alguns anos, que muito nos chocou: a exoneração do mestre admirável, professor Leôncio Ferreira do Amaral. Sem nenhuma explicação aos alunos, foi destituído do cargo de diretor e demitido de suas atividades educacionais. Que injustiça terrível! Acabaram com seus sonhos! Findou sua vida em extrema pobreza, em um quartinho de hotel, em Belo Horizonte. Com o passar do tempo, a verdade foi revelada, declarada sua inocência e encerraram o caso. Será que a justiça foi feita? Não sou advogada, mas arrisco a dizer que não. Em 1970, em plena ditadura militar, a escola passou a se chamar Escola Estadual Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Injustiça extrema!

​Voltando ao início do texto, agora entendo as conversas na mesa do almoço e do enigma do “corte do abacaxi”. Papai nos educou e nos levou a entender a essência da justiça: “tudo começa doce, depois vem o ácido”. É um assunto tão importante quanto difícil. Ninguém pode escapar da relevância da justiça, porque diz respeito a tudo e a todos.

Lamentamos sempre sua ausência. É nosso dever continuar defendendo os injustiçados. Todos somos dotados de dignidade. Não deve haver retaliação nem castigos quando um crime está sob investigação. Isso não é justo.

Dois beijos... 

                                       

Iná e Ani

gemeasanina@hotmail.com

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