Você chegou a ser atacado pelo “lacerdinha”? A gente ficava encostada no canal, antes de tudo ser asfaltado na avenida Leopoldino de Oliveira. Era o córrego das Lajes. A céu aberto, ladeado por árvores em sequência. Era bonito... uma brisa gostosa! Hoje está tudo asfaltado, comum, sem graça, sem encanto. Ficávamos ali, conversando com algum rapazinho ou só fazendo hora para ir ao cinema, que era bem ali em frente, do outro lado do canal; perto tinha a Linde Lanche. Éramos encantadas com o novo cinema, o Cine Palace. Como cinéfilas, não perdíamos nenhuma sessão. Era debaixo das árvores, fazendo hora para entrar no cinema, que rolavam os primeiros namoricos, olhos nos olhos, as primeiras paixonites. Mas aquele lugar era infestado pelo “lacerdinha”.
Será que deram esse nome por causa do Carlos Lacerda, um jornalista político brasileiro que fazia oposição a Getúlio Vargas, presidente na época? Lacerda fazia duras críticas ao governo, era uma pimenta no olho do presidente Getúlio Vargas. Acabou sendo assassinado. Misericórdia!
Voltando ao “lacerdinha”, o danado entrava no olho da gente e parecia que tinha entrado uma fagulha, areia, um corpo estranho que te deixava cega. “Ave Maria! Ani, me acode, tira o ‘lacerdinha’ do meu olho!”, eu gritava. E ela, com um lencinho, vinha me salvar. Lá estava o bichinho: minúsculo, pretinho, parecia uma pimenta-malagueta braba, curtida em óleo. Um tormento!
O “lacerdinha” era tão chato que, quando aparecia algum rapaz inconveniente, bastava sussurrar: “Lá vem o ‘lacerdinha’…”
Lembro-me perfeitamente de um amigo goiano, sempre cheio de histórias das aventuras e matanças de animais ferozes nas terras sem lei. De repente, o valentão virou de costas e, com os olhos lacrimejantes, gritou: “Socorro! O ‘lacerdinha’ me atacou!” Era o “lacerdinha”… pior que onça brava!
Anos depois dessa praga, li no livro do Mário Prata, Pelo Buraco da Fechadura, que foi o tio dele, Alaor Prata, quem importou os pardais para combater a praga dos “lacerdinhas” em 1930. Trouxe um navio com o porão cheio de pardais. Da África para o Brasil. E não é que os “lacerdinhas” sumiram com a chegada deles? Vai ver os pardais eram os predadores oficiais. Só que aí... já é presente de grego.
Papai era fissurado em pescaria, comprava apitos que imitavam o gorjeio dos pássaros. Quando aparecia com a sacolinha cheia deles, era um verdadeiro show de passarinhada, lindo de ouvir. Um dia ficou sabendo que o nosso sapateiro da rua Carlos Rodrigues estava vendendo filhotes de pássaros-pretos. Correu até lá, curioso. Voltou decepcionado. “Podem até ser pássaros exóticos, mas filhotes de pássaros-pretos, isso não são.”
Dizem as más línguas que o sapateiro pintava os pardais com tinta preta e brilhosa e os vendia como se fossem pássaros-pretos, por alto preço. Os compradores passavam anos esperando o pardal em black-tie cantar, até que a bagunça do coitado e a piação faziam a mulher abrir a gaiola e soltar o praguinha. E lá ia voando o pardal, feliz... e já desbotado.
Nessa triste realidade toda, leitores, qual vocês preferem: o ataque dos “lacerdinhas” ou a praga dos pardais?
Dois beijos...