Saiu das estantes em voo livre e abrigou-se em árvore frondosa, dando sombra ao viandante cansado. Era uma voz bem timbrada indo pousar no galho balouçante de florido ipê perfumando o tapete de flores douradas. A brisa sorria em manhã outonal derramando perfumes silvestres em associativas lembranças. A natureza em coro celestial acompanhava o tagarelar festivo de anjos em coorte. Odores das flores derramavam-se em porções de gradas lembranças. O viandante dormira embalado na sinfonia que a natureza prodigalizava. E, sonhou!
A voz personifica-se atravessando fronteiras. Depois de merecido repouso, sobrevoou o Cabo da Roca, “onde a terra se acaba e o mar começa”, no dizer de Camões. Refrescou-se nas águas do rio Tejo, espiando a Torre de Belém; circundou o Panteão da História, vislumbrando os grandes vultos em sua última morada desde Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil, até o doce canto da eterna Amália Rodrigues. Continuou seu voo livre, aplaudindo através de suas folhas com palavras de saltitantes conteúdos, enquanto os olhos se embebiam da História viva. Respirou calmamente e, diante de plateia imaginária, jogou a voz pelos quatro cantos do mundo, atravessando fronteiras. Começou seu discurso. Por que tencionam tachar impostos aos livros, amigos necessários que nos apoiam, no desenvolvimento da imaginação, da memória, da atenção e do raciocínio?
Aumentou a voz para responder: seria porque nos vêm do meio vegetal, do corte de dezenas de árvores de eucalipto transformadas em celulose, na fabricação do papel? Papel que pode ser reciclado, evitando-se o problema ambiental do lixo, porque, como disse Lavoisier: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A voz humana que se embebe da voz do livro, na sua liberdade de expressão, tão necessária, legitima o estilo condizente com o pensar e o agir.
Repagina as sublimes folhas concedidas pela natureza, no seu afã de reciclar formatando novas palavras e recriando diferenciadas páginas.
Voz que não esmorece ante presságios da tecnologia a entrar sorrateira para lutar com o livro físico. Livro-voz que não envelhece! Jamais voz gritante, que o faria enrouquecer ante atitudes impensadas. Voz-livro, sempre bem timbrada e ecoante no espaço. Verbo fácil na total ação da palavra, sempre lembrada e enriquecida. Jamais, voz pregando no deserto!
Sempre persuasivo, muda o tom e continua:
Estantes benditas, sustentando livros, levando o povo a pensar, segundo cantou o poeta dos escravos, Castro Alves.
Livros volumosos ou frágeis, bons tagarelas, oráculos predestinados, que falam pela boca de quem os leem, pelos olhos de quem os veem e pelo coração de quem os sentem. Pensamento, a tecer o livro em rica metástase de palavras ideadas, a se espalharem pelo mundo irrequieto da imaginação.
Palavra voz, sem estação de pouso, viajante incessante a carrear desejos recriando imagens e ampliando sonhos! Voz-palavra a formatar identidades. Mágico e poderoso instrumento de compilação, abrindo caminhos sem fronteiras, acrescentando-se novos rostos aos que cria pelas estradas. Alma ambulante, carreando chegadas e partidas sem pontos de encruzilhada. Às vezes, violam-na, mas rapidamente credenciam-na ao dileto criador, que a identifica na consanguínea genética de um estilo ricamente historiado, da raiz à copa das árvores.
Silêncio reflexivo! Não me faça moribundo. Entre nesse mundo fantástico das letras, proteja minha morada de insaciáveis espaços. Alimente-me e contemple sonhos!
Abra-me em corolas de luz! Borrife pelos caminhos do conhecimento cabeças pensantes, criando asas à imaginação. Deixe-se levar pela robustez das palavras saltitantes, emergidas de campos arejados, rebuscando na euforia do prazer valores ainda capengantes da existência humana.
Sou campanário-refúgio na busca da palavra acoplando-se à forma na arquitetural imagem sonora. Palavra-voz na dissipação do verbo fácil, deformante, preguiçoso, desleixado e apodrecido. Voz-palavra a jorrar experiência entre pedras e cascalhos, galhos secos, chão duro, lamacento, charqueado, calcário, arenoso e movediço a soterrar o ócio e a insensatez.
Sou templo da palavra clara, policiada, distinta, correta, agradável, elegante e sensibilizadora. Palavra lembrada, proferida, achada e enriquecida. Palavra de estilo, sem cópias, criando e recriando em meio às atenuantes do nascer, do crescer e do fazer, saciando a sede do saber e do prazer. Palavra, chave na abertura do cotidiano sem ser metódico, do novo como vanguarda, do antigo sem ser ultrapassado. Palavra, onde a paz, a coragem, a solidariedade, a amizade, o sorriso franco, o interesse, a emulação, a pesquisa e o deleite acionam cabeças e corações agigantando sentimentos nobres na valorização da própria vida. Reverencie-me como sacrossanto arauto da sapiência devastando ignorâncias, fraquezas, preconceitos!
Arahilda Gomes Alves
Cadeira 33 ALTM; dois primeiros lugares: em Contos – A menina que semeava poesias (R.S.), e em Crônica – Amiga voz (2018), Feira do Livro em Guadalajara (México)