Chegam e se avolumam formatando imagens, que a vida ilustra. Às vezes, andando despreocupada (nem tanto, porque pode haver bandidos à espreita), seu olhar se volta para os matizes de um ipê. Provocam, com o deslumbramento das cores, ideia forjada pela imaginação. Pelos caminhos galgam barreiras ou retornam ao passado.
Uma composição de Camargo Guarnieri com dedicatória, só depois de cantada para ele, na Faculdade, pelos idos de setenta: “As flores amarelas dos ipês/Andaram conclamando/Que te viram tristonhas/Aos pés da laranjeira/Toda em flor/Mas eu não penso nelas/São muito tagarelas/As flores amarelas dos ipês...
Há quem diga que todo escritor tem crônica sobre os ipês. Ouvi de um médico acadêmico, nas reuniões de nossa ALTM – Dr. João Gilberto Rodrigues da Cunha. Creio ter acertado.
Toquei com os dedos dos pés cansados a polpa macia das pétalas desmaiadas, no tapete dourado sobre o negrume do asfalto. Revolvi as folhas secas que empanavam o reluzente viço das florinhas medrosas aconchegadas umas às outras, ante o barulho de rodas velozes a lhes esfacelarem a alma. Com os olhos acompanhava a forma majestática do tronco ereto, orgulhoso, a suportar em seus tentáculos viçosos a seiva bruta, acalentando os galhos encrespados... Fechei os olhos e inspirei o odor das flores derramando-se em porções associativas e motivadoras. Voltei a perscrutar no silêncio da tarde que se dissolvia em arrepios o sussurrar de galhos a se debruçarem preguiçosos e assustados, a cada corola que o chão atraía, impassível, devorador... Meses depois, voltei a olhar o ipê-amarelo. Os galhos não mais ostentavam sua opulência dourada. Serpenteavam-se ao vento, em gestos complacentes, clamando pela dança dadivosa dos zéfiros, que lhes dera prazer. Hoje, soluçando saudosas do esplendor aurífero, que em poucos meses perdera sua glória, guardando orgulho e opulência, pranteavam lágrimas, num derramar de saudades... Percebi que os homens são como aquele ipê-amarelo. Estufam o peito, orgulhosos, sem pensar que a vaidade se desvanece ante a efemeridade das coisas.
Assim nasce o escritor, das páginas da vida, desenhando a vida em páginas. Navega pelo intelecto, despertando sonhos. Galga barreiras, retoma viagens pelas linhas do tempo, espreitando caminhos em construção.
E, caminhando com eles, chega-se à vovó, em curso de cátedra, a ensinar pelas muitas letras ambulantes as páginas gravadas na memória do livro que semeou.
Arahilda Gomes