Talvez contasse ter dez anos. Frequentava a paróquia da igreja de São Domingos como “imeldista” a santinha Imelda, de triste história. Por estudar no Grupo Escolar Brasil, próximo àquela igreja, mantinha o hábito de lá frequentar os sacramentos e as reuniões, além dos teatrinhos, vida de santos. Fazia as atas das reuniões, o que a auxiliava em pensar duas vezes antes de escrever, aprimorando o português.
Mês de maio, mês de Maria, lá estava ela, frequentando o catecismo, ora brincando no grande pátio dos padres dominicanos como se estivesse em plano divino. O pátio ostenta a secular igreja de pedras tapiocanga e, do lado de fora, uma árvore serve de nicho à imagem da Mãe de Deus. Lugares santificados, momentos de um despreocupar sadio, em que os pais aceitavam os dias corridos e seguros de quaisquer contratempos. O tempo caminhava calmo; o céu, mais azul do que cinza; os passantes, despreocupados com a cidade em calmaria.
Fim do mês de maio, coroação de Nossa Senhora, ensaios e cantorias, marcando o mês mariano. Mas, também, de tempo dúbio, com sol e chuva, “casamento de viúva”, chuva e sol, “casamento de espanhol”.
Pensamentos que me vieram à baila por entrar em agosto, mês dedicado à padroeira da cidade, Nossa Senhora da Abadia.
Naquele ano, a catequista a escolhera para coroar Nossa Senhora. Primeiramente, a procissão circundando a bela igreja, altar enfeitado de flores naturais perfumando, também, as de papel crepom, que se misturavam ao grande e imponente andor. Escadas laterais próximas a ele circundavam-no, disfarçando o arranjo, uma vez que olhares todos se concentrassem na bela imagem da Mãe de Deus com o Menino Jesus ao colo, havendo dois momentos para a coroação – a de Nossa Senhora e a do Menino Jesus. Ensaios seguidos, pensamentos voltados para o vestido branco e longo à altura do evento.
A prima fizera a primeira comunhão, vestido de seda branquinho como asas de anjos… Quem sabe, a mãe fazendo o pedido para empréstimo à santa causa, com promessas de não sujar o vestido, a não ser se impregnar do perfume das rosas do andor...
Pedido feito e aceito. No dia da Coroação, vestidinho comprido, de organdi, faixa marcando a cinturinha, o desfile em procissão entoando cânticos à mãezinha do céu: “Flo-o-res, flo-o-res, flores a Maria/Cuja gloo-ri-i-ficação/Ne-es-te-e di-i-a de a-a-le-e-gria/En-en-che o nosso co-o-ração...”
O coro em repetição, vozes angelicais, cestinhas de pétalas de rosas em volta do pescoço para jogá-las no momento certo. A procissão em volta do pátio, o céu não mais azul, derramou chuva forte e barulhenta, dispersando crianças e adultos. Roupas molhadas em direção ao altar lateral, onde se achava a imagem de Maria, o Menino no colo e, ajoelhado aos pés da Santa Mãe de Deus, São Domingos.
Era necessário que o gesto se completasse, colocando-se a coroa na cabeça, aureolando-a de graças. A garota, vestidinho encolhido no corpo, subiu cônscia de responsabilidade, até o grande nicho. Não alcançava, nem de bracinhos esticados, a cabeça para coroar Nossa Senhora. As catequistas se apressaram na solução. Uma banqueta coberta com véu branco valorizara a cena… A menina “coroante” depositara na banqueta a grande coroa, em meio à chuva de vozes e rosas! Flo-o-re-es, flo-o-re-es, flo-res a Mari-a...