Aquela manhã parecia ser mais uma normal, como tantas outras. Trabalhadores saindo do condomínio de luxo, após uma noite cuidando de idosos (realmente da melhor idade) e outros chegando para assumir seus postos na portaria. Encontravam-se no ponto de ônibus, uns descendo e outros na espera da chegada do seu busão para embarcar.
Nisso, aparece do nada um cão feroz. Qual raça? Não importa, bastam os dentes à mostra. Segurado por seu dono – isso é coisa das antigas, hoje é tutor, quase pais –, ao perceber a presença de estranhos, avança contra os passageiros, que ficam acuados contra a parede, essa coberta por frondosos arbustos.
– Calma, não corram. É que ele tem complexo de inferioridade, um psicólogo veterinário diagnosticou, é uma espécie de TOC canino.
Mas correr para onde, se, com certeza, o bicho pega. Foi quando uma senhora, segurando contra o peito a sua bolsa e uma sacola de comida que sobrara e a qual estava levando para o seu cachorro – pelo menos era o que alegava –, uniu as palmas das mãos em oração.
– Ai, meu Deus! E esse ônibus que não vem logo! – lamenta uma estudante, filha do caseiro de uma das mansões. – Tenho que chegar na hora, pois hoje tenho prova.
– Moça, sinto muito. Ele, quando empaca, dá nisso. Só se afasta quando lhe dá na telha. Como falei, ele tem laudo.
– E esse cachorro não tem nome? – pergunta um senhor, que tenta estalar os dedos, na esperança de uma comunicação ou ao menos um balançar de rabo – kis, kis, kis.
– Não faça isso – avisa seu dono. – Ele não gosta. Pensa que o estão tratando como criança, tentando enganá-lo.
Pronto, agora o negócio deu ruim. Eis um cachorro que não quer ser tratado como tal. Ainda, por cima, cheio de gostos e manias.
– Meu senhor – apela um dos acuados, que já parecia sem paciência. – Tenho hora de chegar em casa. Tenho consulta médica, já marcada há meses e logo hoje, não posso perder.
E, paciência perdida, diz – quer saber de uma coisa, vou me embora.
– Não faça isso. Chupa Sangue não vai gostar.
Agora lascou. Após a revelação do nome do cão, bem propício a um cão mesmo, o clima ficou tenso.
– Moço, o senhor quer dizer chupa-cabras, não é?
– Não, moça. É Chupa Sangue mesmo. Ele participava de rinha de briga de cães.
Todos agora se espremem mais ainda contra as plantas, não fosse pela parede, pernas para que te quero, já estariam longe.
– E agora, meu Deus? O que fazer? Nem nos ajoelharmos podemos. Qualquer pantim que se fizer já era.
E como diante de situações periclitantes parece passar um filme de nossas vidas, pensamos na família, na infância...
– Que saudade dos vira-latas do meu Nordeste. Eu que achava perigoso “Esqueleto brabo”, lá do meu Piauí.
Mas, como Deus na sua infinita misericórdia atende a pedidos sem necessariamente ser preciso circunflexão, não mais que de repente começa uma chuva fina, o que faz com que o Chupa Sangue recue e choramingue, a pedir braços.
– Oxente! – exclamou o porteiro recém-chegado do Norte (aliás, do Nordeste. É que, para lá, aqui para cima tudo é Norte) e ainda não perdera o seu sotaque nordestino para o carioca.
– É que Chupa Sangue, quando era filhote, recebeu de surpresa um esguicho de água fria no focinho, frustrou-se e até hoje o coitado não se recuperou do trauma.
Todos, agradecidos a Deus pela chuva providencial, viram o Chupa Sangue se afastar todo encolhido, nos braços do seu dono, tutor, pai, para um suspiro coletivo de alívio.
– Eh, hem, bichinho – lamenta uma das pessoas que estavam de refém e agora manifesta a síndrome de Estocolmo, sentindo piedade do seu algoz. Ou então é porque pobre é assim mesmo, sente pena de outros pobres.