ARTICULISTAS

A crise no olhar

Frederico Oliveira
Publicado em 20/08/2025 às 18:04
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“A visão precede a palavra”, lembra John Berger em Modos de Ver. A frase, de uma simplicidade desconcertante, desloca-nos para o início das coisas: antes de nomearmos, classificarmos ou discursarmos, havia apenas a percepção. O mundo nos atravessava pelos olhos, como excesso e presença. A linguagem viria depois, para ordenar, recortar, estabelecer vínculos entre o que se vê e o que se pode pensar. Mas Berger insiste que essa relação nunca se fecha: “a relação entre o que vemos e o que sabemos está sempre aberta”.

É justamente nesse intervalo, entre o ver e o saber, que se instala o que podemos chamar de uma crise do olhar no presente. Não se trata apenas de excesso de imagens, mas de uma saturação que esvazia a experiência de ver. No cotidiano, olhamos muito e vemos pouco. A visualidade é consumida em rolagens infinitas, curadorias algorítmicas e filtros que ajustam a percepção antes mesmo que ela aconteça. O olhar, que deveria ser encontro e demora, torna-se gesto automático, atravessado pelo cálculo e pela distração.

Gilles Deleuze pode nos ajudar a entender esse impasse. Para ele, ver nunca é um ato passivo: olhar é sempre atravessar um campo de forças, deixar-se afetar por linhas de fuga, perceber não só formas, mas, também, intensidades. Não vemos simplesmente objetos, mas modos de existir. Quando o olhar se torna colonizado pelo reconhecimento rápido, pelo “já visto”, perde-se justamente essa dimensão intensiva. O que deveria ser encontro com o novo se reduz à confirmação do mesmo.

A crise no olhar contemporâneo é, portanto, uma crise da atenção e da abertura. Berger fala de uma relação “sempre aberta” entre ver e saber; Deleuze, por sua vez, insiste que só há pensamento quando algo nos força a sair do reconhecimento habitual. O problema é que o presente reduz os tempos de demora, não há mais espaço para sustentar a opacidade do que não se entende de imediato. Quer-se que tudo seja legível, traduzível, consumível. A opacidade, o indizível, o que ainda não tem nome, são expulsos.

Mas é nesse lugar que reside uma possibilidade de resistência. Recuperar o olhar como experiência de estranhamento, como demora no que não se explica rápido. Permitir que o ver não se dissolva imediatamente no saber. Berger nos recorda que “explicamos o mundo através da palavra, mas palavras nunca poderão contrariar o fato de que o mundo nos envolve”. O que vemos não cabe inteiramente no que dizemos e é nessa fissura que o olhar pode recuperar sua potência.

Um olhar que não reduz, mas se deixa afetar. Um olhar que não se satisfaz em reconhecer, mas que insiste em estranhar. Talvez seja essa a tarefa no presente: aprender a ver de novo.

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