Há algo em “Grande Sertão: Veredas” que escapa à leitura costumeira do romance de formação ou da epopeia de um jagunço entre o bem e o mal. O que pulsa ali, sob as camadas de prosa iluminada, é uma ontologia em fúria. Não se trata apenas de um homem narrando o que viveu. Trata-se de uma voz atravessada por tantas forças que o sujeito que fala já não se sustenta como um “eu” estável. Riobaldo é muitos. É o que foi, o que lembra ter sido, o que talvez tenha sonhado. É o corpo onde o mundo se enfeitiça.
Lido à luz do perspectivismo multinaturalista, tal como elaborado por Eduardo Viveiros de Castro, Rosa parece menos um autor “regional” e mais um ontólogo literário. Sua escritura desmonta o que o Ocidente entende por sujeito, mundo e verdade, não por falta de rigor, mas por excesso de mundo. Em Rosa, as palavras não descrevem. Elas desfazem e refazem a realidade. São encantamento, sim, mas também método. Rosa compõe uma metafísica que vibra, atravessa e desloca, como o xamã que muda de corpo para ver o mundo de outro lugar.
O perspectivismo, tal como formulado por Viveiros (2017), parte da ideia de que não há um mundo único com múltiplas visões, mas múltiplos mundos que se relacionam a partir da posição dos corpos. Para o pensamento ameríndio, mas também para diversos povos afro-diaspóricos, andinos, ciganos e ribeirinhos, o que define a forma do mundo é o ponto de vista: o corpo que vê, que age, que sente. E esse corpo é relacional, transmutável, inacabado.
Rosa escreve assim. Não como quem descreve o real, mas como quem o torna possível outra vez. A linguagem em Rosa é um xamanismo da palavra: ela se dobra sobre si, ela inventa léxico, ela suspende o regime do sentido para criar brechas por onde o mundo possa passar, não como representação, mas como presença. O que está em jogo não é um sertão geográfico, mas um sertão ontológico: o lugar em que o ser se dissolve.
Quando Riobaldo afirma que “tudo é e não é”, ele não está sendo filosófico no modo hegeliano. Ele está narrando a experiência de um mundo que não se organiza pela lógica da identidade, mas pela travessia. Um mundo onde o corpo muda, onde o tempo se dobra, onde os nomes não dão conta. Um mundo que só existe na variação.
Essa abertura para o outro, para o outro em si, para o outro no mundo, é o que aproxima Rosa de Viveiros de Castro. Ambos se insurgem contra o projeto de um eu soberano, de uma realidade una, de uma linguagem transparente. Ambos operam pelo excesso: Rosa pela sintaxe em vertigem, Viveiros pela multiplicidade cosmológica que desautoriza o universalismo moderno.
Ambos apostam no entre (espaço intermediário) como categoria vital. O entre como gesto ético e estético. O entre como lugar de tradução impossível, mas necessária. O entre como espaço de escuta onde não se trata de reduzir o outro a si, mas de sustentar sua presença sem assimilá-lo.
No perspectivismo, o xamã é aquele que se desestabiliza para ver. Aquele que abandona a forma para se deixar afetar pela alteridade. É exatamente isso que Riobaldo faz, ainda que não saiba, ainda que tema. Sua travessia não é só física, nem apenas ética: é ontológica, relativa ao ser. O pacto com o demo, que talvez tenha ou não acontecido, é menos uma negociação religiosa e mais uma rendição àquilo que escapa. O demônio, aqui, é o nome do que não se nomeia. Do que excede. Do que força o corpo a se tornar outro.
Se, como afirma Viveiros (2017), o corpo é um feitiço, isto é, um lugar onde forças se inscrevem, onde o ponto de vista se desloca, onde o mundo se reconfigura, então “Grande Sertão” é um manual de feitiçaria ocidental. Não no sentido exótico ou primitivo, mas no sentido mais radical: o romance como corpo que se abre ao mundo. Que se recusa à estabilidade. Que aceita o risco da metamorfose.
Em tempos de identidades fixadas, de linguagens domesticadas, de realidades gerenciáveis, Rosa e Viveiros nos ensinam a hesitar. A desfazer a rigidez do eu. A desconfiar da ideia de que o mundo é só um. A acreditar que ainda há, na escuta, no corpo, na linguagem, forças capazes de refundar a realidade.
Rosa não explica o sertão, ele o encarna. E, talvez, o perspectivismo não deseje capturar o mundo em definições, mas abrir espaço para que ele seja habitado por outros mundos possíveis.