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“Ayni” (dicionário de intraduzíveis #9)

Frederico Oliveira
Publicado em 22/11/2025 às 10:53
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Entre os povos andinos, existe uma palavra antiga, anterior às fronteiras e às economias modernas: ayni. No idioma quíchua, ela designa um princípio de reciprocidade, o que se dá retorna, o que se recebe compromete. Não é troca nem contrato, mas um modo de habitar o mundo em fluxo. Ayni é o reconhecimento de que tudo o que vive está em relação.

Nas montanhas do Peru e da Bolívia, ainda hoje se diz que a terra dá porque recebe. O agricultor oferece à Pachamama um punhado do que colhe antes de provar o primeiro grão. É gesto simbólico, mas também prático: devolver é parte do ciclo que garante continuidade. A gratidão não é moral, é estrutura do real. O solo não pertence ao homem, o homem pertence à rede de trocas que sustenta o solo.

O intraduzível de ayni começa aí: não há hierarquia entre o dar e o receber. Ambos são movimentos do mesmo ritmo. A vida não se acumula, circula. E quando o fluxo é interrompido, quando alguém toma sem devolver, consome sem repor, exige sem escutar, o desequilíbrio se instala. O que o Ocidente chama de “crise” talvez seja apenas o nome moderno da quebra do ayni.

Na economia capitalista, dar é perda. No ayni, dar é continuar. Cada oferta devolve o mundo ao seu eixo. A palavra contém em si uma filosofia de abundância diferente da nossa: abundância não é ter muito, é fazer o que se tem, circular. O gesto de partilhar não é generosidade, é inteligência da sobrevivência.

Mas ayni não é apenas prática agrícola ou social. É também uma forma de pensar os vínculos afetivos. Amar, nesse sentido, é aceitar estar em ayni: o amor que não flui, apodrece; o que se fecha, se quebra. Há um tipo de alegria que nasce quando o que damos encontra eco em outro corpo, quando o gesto se prolonga sem precisar ser medido. O ayni dos encontros é essa força que se devolve sem cálculo, que não se contabiliza, mas permanece.

O contemporâneo, com sua cultura da apropriação, parece esquecer essa gramática. Estamos habituados a tomar: tempo, atenção, imagens, energia. Tudo se transforma em consumo. Ayni propõe o oposto: um modelo de presença em que cada gesto deixa espaço para o retorno. Falar, ouvindo. Usar, reparando. Habitar, cuidando.

O intraduzível da palavra está nesse compromisso sutil: não se trata de caridade, mas de correspondência. Ayni não é idealismo, é reciprocidade ativa. O que se dá volta de outras formas, às vezes mais lentas, às vezes invisíveis. E é esse invisível que sustenta o tecido do mundo.

Em tempos de urgência, ayni soa como lembrança e advertência. Nada vive sozinho. Nem o rio sem a montanha, nem o corpo sem o ar, nem o humano sem o outro. O que se rompe entre nós repercute no todo. O que se cuida aqui se reflete lá.

Entre o gesto de gufra, que acolhe o suficiente, e o de ayni, que devolve o recebido, há uma ética do equilíbrio. Uma sabedoria antiga que o progresso esqueceu, mas que a vida insiste em reensinar. O que se oferece não se perde, se transforma.

Ayni é o verbo da continuidade: o mundo respirando em nós, e nós respirando no mundo.

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