“Não há bebê.” Essa frase enigmática de Winnicott não deve ser lida como uma provocação absurda, mas como uma proposição relacional radical. O que ele quer dizer é simples e imenso: não há sujeito sem ambiente. Não há “eu” sem o “com”. O bebê só é bebê porque há alguém, um outro suficientemente presente, que lhe oferece um mundo acolhedor, sustentador, responsivo. O que chamamos de “sujeito” é, antes de tudo, uma relação.
Curiosamente, ou poeticamente, essa mesma tese parece atravessar as cosmologias indígenas descritas por Eduardo Viveiros de Castro. No mundo ameríndio, não é o sujeito que preexiste e depois percebe o outro. É o outro que funda o ponto de vista. Somos, todos, seres perspectivistas: o que vemos depende do lugar que ocupamos, e esse lugar é sempre construído em relação.
Enquanto Winnicott afirma que o ambiente precede o eu, que sem a experiência de cuidado não há constituição psíquica, Viveiros escancara que o eu, para os povos indígenas, não é um ponto de partida, mas uma conquista relacional. É no cruzamento entre os corpos, nas trocas com o não-humano, nos rituais de transformação e feitiçaria que se organiza uma pessoa. Ser gente, nesse mundo, é sempre um verbo em relação.
O que nos dizem, então, um psicanalista inglês da metade do século XX e um antropólogo que se embrenhou na floresta para ouvir os povos ameríndios?
Dizem que o eu não é soberano, que não nascemos prontos, que não nos bastamos. Dizem que a alteridade é constitutiva. Que um mundo centrado no ego, na propriedade, na identidade fechada, é um mundo que enlouquece. Um mundo que desaprendeu a cuidar, ou, pior, que aprendeu a fazer do cuidado um produto a ser vendido.
A política do cuidado, em Winnicott, nasce da delicadeza: do “sustentar nos braços”, da presença silenciosa e responsiva, da criação de um espaço onde a criança possa existir sem se defender. Mas isso não é apenas uma teoria da infância: é uma ontologia relacional. É a afirmação de que a saúde psíquica só emerge quando há um mundo suficientemente bom, não um sujeito suficientemente forte (WINNICOTT, 2021).
Do outro lado, Viveiros de Castro nos mostra que o mundo não é uno, que há múltiplas formas de existência, múltiplas lógicas, múltiplas ontologias convivendo, e sendo destruídas, neste planeta colonizado. Nas cosmologias ameríndias, os animais, os espíritos, os mortos, os rios, as árvores são sujeitos em potencial: têm agência, têm ponto de vista. A ética não é sobre tolerar o outro, mas sobre reconhecer que não existe “um” mundo a partir do qual julgar todos os outros. Há mundos em relação, em constante tradução e disputa.
Se o mundo moderno se construiu a partir da ideia de separação, entre razão e corpo, sujeito e objeto, humano e natureza, o gesto de escuta que ambos os autores propõem é inverso. O cuidado, aqui, não é um afeto secundário ou um gesto moralizante, mas uma prática de presença radical.
Cuidar é escutar o corpo e o outro como territórios vivos. É reconhecer que o sofrimento não é um erro a ser consertado, mas um sintoma do mundo que nos habita. O corpo sente antes de saber. Ele sinaliza o que ainda não encontrou forma. Nesse sentido, o cuidado é a escuta do que ainda não tem nome, e por isso mesmo é político.
Há uma micropolítica do sensível que atravessa os gestos cotidianos: o modo como nos sentamos ao lado de alguém em silêncio, o modo como respondemos a uma presença sem sufocá-la, o modo como deixamos o tempo do outro nos atravessar sem pressa. Não se trata apenas de criar vínculos, mas de descolonizar o modo como nos relacionamos com o outro, com o tempo, com o espaço, com o próprio desejo.
Uma pergunta urgente hoje: como refazer o mundo a partir do cuidado? Como reconstruir os laços partidos, as subjetividades feridas, os mundos esgarçados pela aceleração e pela indiferença?
Winnicott nos responderia com um gesto: “Sustente o outro no colo até que ele possa sustentar a si mesmo.”
Viveiros de Castro, com uma dança: “Permita que o outro o enfeitice, que você veja com os olhos dele, que se desfaça um pouco para que o mundo se refaça.”
Ambos sabem que o sujeito é um processo relacional, sempre em risco, sempre em devir. Ambos apostam que, mesmo em tempos sombrios, ainda é possível criar espaços de transição, de escuta, de coabitação.
Porque, no fundo, a vida não começa no eu. Começa no entre.