Há palavras que não descrevem, apenas convocam. Duende é uma delas. Não se explica: se sente. Os espanhóis a pronunciam como quem invoca algo que vem de baixo, uma força que sobe da terra e atravessa o corpo, não divina, mas visceral. O duende não se manifesta na leveza, e sim no atrito entre vida e morte, entre limite e entrega. É o instante em que o gesto artístico deixa de ser forma e se torna febre.
Federico García Lorca dizia que o duende é presença que queima e que exige sangue. Não há método que o convoque nem técnica que o assegure. Ele aparece quando o artista se aproxima do risco: quando canta como se fosse a última vez, quando escreve sabendo que cada palavra pode falhar, quando dança como quem luta com o próprio corpo. O duende não habita o campo da perfeição, mas o da intensidade.
O intraduzível dessa palavra não é mistério folclórico, é verdade humana. O duende é o que irrompe quando não há mais máscaras. É o momento em que o que se sente atravessa o que se faz. Ele não se ensina, apenas se reconhece: o tremor que percorre a pele, o nó na garganta, o arrepio coletivo quando algo acontece e ninguém sabe explicar. O duende é essa irrupção: o instante em que a vida se dá por inteiro, sem pedir licença.
No flamenco, ele é o grito que rompe a melodia e a transforma em lamento. Mas sua presença vai além da música. Pode estar num poema que desarma o leitor, num quadro que nos observa de volta, numa voz que canta fora do tom e, mesmo assim, acerta o coração. O duende é o avesso do espetáculo: o ponto em que a arte deixa de ser representação e se torna experiência real.
No tempo das telas e da distração constante, o duende é quase uma heresia. Ele exige presença radical, corpo e respiração compartilhada. E essa exigência o torna político. O duende não cabe nas lógicas da performance digital, onde tudo é preparado para durar poucos segundos e gerar aplausos imediatos. Ele resiste porque é acontecimento sem replay. Não se grava: ou se está ali, ou se perde.
Há algo de sagrado e terreno no duende. Ele nasce da dor, mas não é melancolia; vem do sofrimento, mas o transfigura. Não busca beleza, cria ferida. E é dessa ferida que brota a verdade. Todo artista que se entrega completamente, seja num palco, num ateliê ou diante de uma página em branco, sabe o que é tocar esse ponto onde o controle se dissolve. É nesse instante que o duende se manifesta: quando a arte deixa de ser feita e começa a fazer.
Mas o duende não pertence só à arte. Há duende num abraço que desfaz uma solidão antiga, num olhar que diz o indizível, na voz que tremula ao pronunciar um perdão. O duende é a força que se instala quando o afeto ganha corpo, quando o indomável do humano se torna gesto.
O intraduzível da palavra é o que ela preserva de silêncio. Duende é o nome dado àquilo que não tem nome: o instante em que a linguagem se rasga e, no rasgo, a vida aparece. O que permanece depois é rastro, cansaço, respiração. O que passou não se repete, e é essa irrepetibilidade que o torna verdadeiro.
Em tempos de contenção emocional e de ruído excessivo, o duende é o que nos devolve à presença. Ele exige corpo, vulnerabilidade e risco. É o contrário da indiferença. Sua aparição nos lembra que estar vivo é mais do que sobreviver: é deixar-se atravessar pelo que não se explica.
O duende é a vida em estado de urgência. E é nesse estado, entre o invisível e o corpo, que o intraduzível se faz carne.