No último ENEM, uma palavra árabe apareceu entre as questões: gufra. A princípio, soava apenas como curiosidade linguística, a quantidade de água que se pode segurar com as mãos. Mas, entre o cálculo e a definição, havia algo maior. Uma palavra assim, ao atravessar um exame, parece fazer o próprio sistema hesitar. Como medir o que escapa entre os dedos? Como transformar em número um gesto que é, antes de tudo, experiência?
Gufra não é medida de volume. É medida de instante. Um punhado de água que começa a escorrer no exato momento em que é colhido. O que a palavra nomeia não é a posse, mas o intervalo entre reter e perder. O intraduzível aqui está nessa fronteira delicada: o limite do que se pode segurar sem que se desfaça.
No deserto, gufra é sobrevivência. É a porção mínima capaz de matar a sede, o suficiente para continuar. Mas há uma dimensão simbólica nesse gesto que ultrapassa o cenário árido. Segurar a água nas mãos é reconhecer a fragilidade do corpo diante da fluidez do mundo. É admitir que o essencial se dá apenas por instantes, e que é justamente por isso que importa.
Vivemos em um tempo que transforma tudo em acúmulo: informação, bens, experiências, afetos. Tudo parece mensurável, quantificável, exportável. Gufra é o reverso desse impulso. Lembra que há coisas que não podem ser retidas sem que se percam. Que o excesso seca. Que a abundância, quando não conhece medida, se torna desperdício.
Há uma ética silenciosa em gufra. O gesto de formar as mãos em concha é também um gesto de humildade. O corpo se curva para acolher, não para dominar. E logo em seguida, a água escapa, não por erro, mas porque é da natureza da vida escapar. O que se segura por um instante é o bastante. O que se tenta prender, se dissolve.
Essa palavra, posta diante de milhões de estudantes, talvez tenha dito mais do que parecia. Num exame que busca respostas certas, gufra insinua a beleza do que não se fixa. O conhecimento não é estoque, é fluxo. O saber não se guarda em caixas, mas nas mãos que se molham.
O intraduzível da palavra está em seu equilíbrio entre gesto e perda. Ela não ensina apenas sobre escassez, mas sobre delicadeza. Gufra não celebra a contenção, celebra o toque. O que cabe nas mãos não é pouco, é o que basta. E é nesse “bastar” que o humano se reconhece: finito, vulnerável, mas ainda capaz de acolher o que passa.
Talvez gufra nos lembre que viver é isso: aprender a recolher a água do tempo, sabendo que ela escorrerá, mas também que cada gota é vida. Não há gesto mais simples, nem mais profundo. Entre o que segura e o que se perde, há um instante de presença, e esse instante é tudo.