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“Komorebi” (dicionário de intraduzíveis #4)

Frederico Oliveira
Publicado em 13/10/2025 às 18:08
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Há uma palavra japonesa para algo que em outras línguas se diz apenas por aproximação: komorebi. Ela designa a luz do sol filtrada pelas folhas das árvores, o instante em que o brilho não é pleno, mas tecido por sombra e movimento. É uma palavra que exige lentidão: para percebê-la, é preciso olhar o tempo passar no ritmo da luz.

O intraduzível de komorebi não está na dificuldade da tradução literal, mas na experiência que convoca. A palavra pertence a um modo de ver o mundo em que a beleza não é o que se impõe, mas o que se revela quando algo interfere. O sol em si não é o centro, é a folhagem que o fragmenta, o vento que o move, o instante que o altera. Komorebi é o brilho interrompido, a claridade que depende da sombra para existir.

Em uma época em que tudo se quer visível, em que a transparência é confundida com verdade, komorebi lembra que o que importa pode estar justamente no que se oculta. A beleza deixa de ser espetáculo para se tornar presença. Não é o sol pleno, mas a luz que se dobra ao atravessar as folhas, a delicadeza do meio, o intervalo entre o que aparece e o que desaparece.

A cidade, com seus vidros, telas e reflexos, também tem seus komorebis. A luz que atravessa uma persiana, o reflexo do fim da tarde num vidro de janela espelhado, o clarão que escapa por frestas e arranha o chão de um quarto. Há algo profundamente humano nesse gesto de ver a luz filtrada: é o reconhecimento de que a vida também se faz de transparências parciais, de luminosidades interrompidas, de instantes que só existem porque não duram.

Komorebi poderia ser o contrário do flash. Enquanto o flash congela, o komorebi respira. Ele não fixa o instante, deixa que o instante passe. Nessa passagem, há um ensinamento sutil sobre o tempo: ver a luz que se move é aceitar que tudo muda e que a beleza não se dá apesar da impermanência, mas através dela.

O intraduzível dessa palavra está em sua recusa à ênfase. Não há exaltação nem drama. Há presença. Em meio à urgência contemporânea, komorebi oferece uma pausa. Não a pausa da fuga, mas a da atenção: o instante em que o mundo continua, e mesmo assim somos capazes de vê-lo.

Komorebi é também um modo de pensar o olhar. Em um mundo saturado de imagens, onde tudo parece querer brilhar, ele devolve valor ao que se deixa atravessar. A luz filtrada não é menos intensa, é mais sábia. Carrega em si a lição de que o que vemos só existe porque há algo que resiste a ser visto. É essa resistência que dá espessura ao real. A sombra não é o contrário da luz: é sua parceira, sua condição.

Nos parques japoneses, há quem pare sob as árvores para apenas observar o jogo da luz e das folhas. Não é contemplação vazia; é um modo de afinar o olhar para o imperceptível. Em komorebi, o tempo deixa de ser linha e se torna respiração. Cada sopro de vento reorganiza o mundo: o que estava iluminado se apaga, o que estava oculto cintila. Viver, aqui, é participar desse vaivém sem desejar controle.

Tal experiência desafia o pensamento contemporâneo, acostumado a nomear e capturar tudo. Komorebi não se fotografa, apenas se presencia. A tentativa de registrar o instante já o altera. E talvez seja esse o seu poder: ele existe para nos lembrar da fragilidade do instante e da precariedade do olhar. É o que escapa que sustenta a memória.

Há uma dimensão ética nesse gesto de ver o que não se fixa. Komorebi nos ensina a conviver com o inacabado, a não exigir nitidez de todas as coisas. Em tempos de discursos totalizantes e certezas urgentes, ele propõe outra relação com o mundo: a de acolher o movimento, a nuance, o que ainda não se decidiu. A luz que atravessa as folhas é a própria metáfora do entre, nem plena, nem ausente.

No fim, komorebi é menos uma palavra e mais um estado de atenção. Uma disposição para ver o mundo no que ele tem de transitório, de sutil, de indefinido. Ele nos convida a reaprender a ver, e não apenas a olhar. É um lembrete de que a beleza não está no que dura, mas no que passa e, ao passar, nos atravessa.

Entre o sol e a sombra, entre o que se revela e o que se esconde, há uma luz viva que não se traduz. Komorebi é essa luz, frágil, efêmera e ainda assim suficiente para nos lembrar que o mundo respira, mesmo quando não o percebemos.

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