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Não somos o que somos: somos o que escapa

Frederico Oliveira
Publicado em 12/08/2025 às 18:26
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Passamos boa parte da vida tentando definir quem somos. É uma tarefa que começa cedo, às vezes antes mesmo de sabermos falar por nós mesmos. Escolhem-se nomes, trajetórias, pertencimentos. No caminho, aprendemos a nos apresentar como se houvesse um núcleo fixo a sustentar tudo, uma identidade estável, sempre à espera de ser descoberta ou confirmada.

Mas e se não houver nada para descobrir? E se a pergunta “quem sou eu?” não tiver uma resposta única, definitiva? Gilles Deleuze responderia que o problema está na própria pergunta. Em vez de procurar uma essência, deveríamos olhar para os movimentos. Não somos algo que se mantém; somos algo que acontece. Somos desvios, bifurcações, passagens. Mais do que identidade, temos trajetórias.

O devir, palavra tão cara a Deleuze, não é uma mudança que leva de um estado a outro, como quem troca de roupa ou de endereço. É uma transformação contínua que não mira um destino. É estar a caminho sem saber de onde se parte exatamente, nem onde se chega. É a vida acontecendo entre uma definição e outra, e escapando de ambas.

No entanto, vivemos pressionados a apresentar versões acabadas de nós mesmos. Currículos, perfis, discursos prontos. Tudo exige que a narrativa seja coerente, linear, sem fissuras. Só que essa coerência, muitas vezes, não passa de um truque: uma maneira de disfarçar a instabilidade que é própria de viver.

O curioso é que os momentos mais vivos, mais reveladores, raramente cabem nessas versões oficiais. Eles aparecem quando, por um instante, não sabemos exatamente quem somos; quando um gesto inesperado, uma decisão imprevista ou um encontro improvável nos desloca daquilo que costumávamos afirmar sobre nós mesmos.

A verdadeira liberdade está em não defender até o fim uma identidade, mas em permitir que ela se abra, se desfaça e se reconstrua de outro modo. Viver como devir é aceitar que não há forma final e que justamente por isso é possível continuar.

Não somos o que somos. Somos o que escapa ao que dizemos ser. O que insiste em não se deixar fixar. E é nessa fuga que a vida respira.

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