ARTICULISTAS

O desconforto de estar vestido de si

Frederico Oliveira
Publicado em 25/04/2025 às 19:05
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“Ah, viver é tão desconfortável”, escreve Clarice. E o que poderia ser apenas uma queixa cotidiana torna-se, em sua escrita, uma anatomia da existência. Clarice não escreve com ideias: escreve com o corpo. Com a vida tocada pelo tempo, com o incômodo de quem sente demais.

Tudo aperta. Tudo exige. O corpo, esse organismo supostamente dócil, cobra: quer saciar a fome, entregar-se ao sono, cumprir o desejo. Mas o espírito… o espírito não adormece. Permanece desperto, mesmo de olhos fechados. E então viver se transforma nisso: “parece ter sono e não poder dormir”, a mais precisa metáfora do que é estar vivo num tempo que não espera nem acolhe. Um sono que não chega. Uma vigília sem sentido. Viver, talvez, seja isso: um cansaço sem cama.

E então ela diz: “Não se pode andar nu, nem de corpo nem de espírito.”
A nudez, em Clarice, é o impossível da transparência. É o desejo frustrado de existir sem precisar representar.

Não nos despimos, nem física nem simbolicamente. Somos, o tempo todo, obrigados a vestir algo: roupas, máscaras, funções, defesas. Mostrar o corpo é escândalo; mostrar a alma, fraqueza. E assim nos protegemos: camada sobre camada, tecido sobre pele, papel sobre verdade. Tudo precisa caber na cena. Como se a nudez autêntica fosse uma peça sem cortina, mas a plateia exigisse figurino completo.

Viver é atuar sem roteiro num palco de críticas prontas. Caminhar pela vida com a coragem de não esconder as costuras. Ser vulnerável sem pedir desculpas. Recusar o figurino social que exige firmeza quando só há abismo. A nudez, aqui, é o estado da alma que não finge. Que não precisa se vestir para ser aceita.

Clarice parece nos dizer que viver é o oposto do conforto. É encarnar o incômodo. É ter uma dobra fora do lugar, uma voz dentro que não sossega. E, ainda assim, seguir.

Porque viver, afinal, também é o exercício de suportar a roupa que não cabe, a fome que não cessa, o espírito que não cala. Mas talvez, só talvez, seja nesse desconforto que resida nossa mais aguda lucidez: a de que não há descanso absoluto, mas há presença.

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