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O mundo não é um só: cinco aprendizados com Viveiros de Castro

Frederico Oliveira
Publicado em 29/07/2025 às 19:06
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Nos últimos meses, enquanto preparava uma nova aula para o curso de Filosofia e Crítica Social, retomei a leitura de Eduardo Viveiros de Castro. A ideia era apenas revisitar os conceitos mais importantes, dar corpo teórico à aula, organizar o material, mas, como costuma acontecer quando o pensamento ainda não se cristalizou, acabei sendo atravessado por mais do que esperava. A leitura veio como se fosse escrita para este tempo exato: um momento em que tudo parece eclipsado pelas pressões do contemporâneo, trabalho, política, identidade, economia, afetos, subjetividade. De algum modo, nos textos de Viveiros encontrei não só um repertório conceitual novo, mas um gesto radical de deslocamento. Um convite a pensar fora da gramática dominante. Um modo de ver o mundo com mais mundos dentro.

Os livros Metafísicas Canibais e A inconstância da alma selvagem não são apenas textos de antropologia. São dispositivos de descolonização do pensamento. E isso significa, entre outras coisas, que neles se abre um campo de possibilidades para repensar a própria vida, a forma como nos relacionamos com o outro, com o tempo, com a linguagem, com o futuro, com o próprio conceito de sujeito. Mais do que teorizar sobre os povos ameríndios, Viveiros nos convoca a desaprender, a suspender os automatismos com os quais organizamos o mundo. Como ele mesmo afirma, “a antropologia é a arte de fabricar o estranho como familiar e o familiar como estranho”.

Partindo desse gesto epistemológico e ético, compartilho aqui cinco aprendizados que me atravessaram nessa retomada e que, acredito, têm ressonância para além dos muros acadêmicos.

1. O mundo não é multicultural. É multinatural. Esse talvez seja o deslocamento mais potente do perspectivismo ameríndio: inverter a lógica ocidental de um mundo único habitado por múltiplas culturas e propor, em seu lugar, uma multiplicidade de mundos, cada qual com sua ontologia, sua cosmovisão, suas formas de existência. Não há uma natureza comum a todos os seres, mas múltiplas naturezas organizadas a partir dos pontos de vista das diferentes entidades. O que nos parece humano pode não sê-lo para um xamã. Um animal pode ver outro animal como gente. Um espírito pode ser ancestral, sombra ou memória. O efeito prático desse aprendizado? Abandonar a crença de que há uma verdade universal que todos precisam alcançar. E começar a escutar. Escutar o outro como quem se aproxima de um outro mundo, com paciência, com cuidado, com espanto.

2. Pensar é uma forma de se metamorfosear. Na cosmologia ameríndia, as fronteiras entre seres são porosas. Tudo pode se transformar em outra coisa. O jaguar pode ser uma pessoa; a pessoa pode virar sombra; a sombra pode conter um espírito. Pensar com Viveiros de Castro é deixar-se afetar por essa ontologia fluida. É aceitar que o sujeito moderno, fixo, individual, separado, é uma invenção. E que talvez o pensamento mais fecundo seja aquele que se deixa atravessar por outras formas de vida, por outros regimes de percepção. No plano ético, isso significa um tipo de empatia radical: não aquela que se coloca no lugar do outro, mas aquela que é deslocada por ele. Uma escuta que muda o corpo.

3. A tradução não é uma ponte. É um campo de batalha. Grande parte da obra de Viveiros de Castro é uma crítica à tradução ontológica: quando uma cultura tenta forçar outra a caber nos seus próprios termos. Traduzir não é apenas “passar de uma língua para outra”; é um ato político, muitas vezes violento. Traduzir pressupõe que se tenha compreendido o que não cabe no vocabulário. E, nos termos de Viveiros, o desafio não é fazer os outros parecerem conosco, mas permitir que sua diferença permaneça. No cotidiano, isso nos obriga a rever nossa maneira de nomear e interpretar o mundo: será que precisamos sempre explicar o que escapa? Será que saber é sempre reduzir?

4. A guerra pode ser uma forma de aliança. Um dos paradoxos mais fecundos do pensamento ameríndio, trabalhado com maestria por Viveiros, é a ideia de que o conflito não é o oposto da aliança, ele pode ser seu motor. A alteridade não precisa ser domesticada; pode ser mantida em tensão criativa. O canibalismo simbólico, por exemplo, é menos uma prática de aniquilação e mais uma estratégia de apropriação: incorporar o outro para torná-lo parte de si, mas sem eliminá-lo. E se aplicássemos isso às nossas relações sociais e políticas? E se, em vez de suprimir o diferente, criássemos modos de conviver com a dissonância, sem abrir mão da intensidade?

5. A alma é instável. E ainda bem. No livro A inconstância da alma selvagem, Viveiros explora como, em muitas cosmologias indígenas, a alma é múltipla, dispersa, móvel. Pode sair do corpo, habitar outros lugares, transformar-se. O sujeito não é um centro coeso, é uma multiplicidade em trânsito. Esse aprendizado tem implicações profundas para a nossa compreensão de identidade. Num tempo em que tanto se exige “consistência”, “clareza” e “posicionamento”, lembrar que a alma é inconstante é uma forma de resistência. É um convite à deriva, à dúvida, à escuta de si como quem escuta o sussurro de uma floresta: sabendo que há ali mais do que pode ser dito.

Voltar a Viveiros de Castro, portanto, não é apenas estudar antropologia. É aceitar que pensar pode ser uma forma de se descentrar. De se abrir ao espanto. De suspeitar da própria linguagem. De aceitar que a realidade não é uma linha reta, mas uma espiral cheia de retornos, travessias, metamorfoses.

Se o mundo está em colapso, talvez não nos caiba mais organizá-lo segundo os critérios que o levaram até aqui. Talvez seja hora de pensar com outros mundos. E como nos ensina Viveiros de Castro, “a tarefa não é interpretar as culturas ameríndias, mas deixar-se interpelar por elas”.

Ou, dito de outro modo: não basta conhecer o outro, é preciso deixar-se desconhecer por ele.

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