Existe uma espécie de exaustão no modo como o mundo contemporâneo insiste em fabricar identidades. Quase tudo o que vemos, ouvimos ou lemos parece girar em torno da necessidade de definição: quem se é, a que se pertence, como se apresenta. Mas pouco se fala sobre o que, afinal, nos impede de permanecer iguais. O que nos obriga a deixar de ser, e talvez seja aí que algo verdadeiramente vivo acontece.
A presença do outro, nessa chave, não é uma confirmação, mas uma interrupção. Não chega para reforçar o que já sabemos sobre nós mesmos, mas para fraturar a continuidade da repetição. O outro, quando é realmente outro, e não um reflexo ou uma extensão, é quem nos obriga a sair do percurso conhecido.
Gilles Deleuze escreveu que o pensamento verdadeiro não nasce da vontade de compreender, mas do choque com o que nos desconcerta. Pensar, para ele, é uma espécie de acidente interno, um tropeço. Não se trata de seguir uma ideia até suas últimas consequências, mas de abandonar um trajeto quando algo, ou alguém, nos força a desviar.
O encontro, assim compreendido, não é um gesto harmonioso. É um rasgo. Um acontecimento que desloca, desacomoda, e só por isso inaugura pensamento. Ao contrário do que o hábito ensina, o outro não está ali para completar a nossa compreensão de mundo, mas para instaurar um mundo novo, aquele que não começa por nós, nem termina em nós.
Eduardo Viveiros de Castro, por sua vez, pensa o outro desde uma perspectiva mais radical. No universo ameríndio que ele descreve, não existe uma humanidade comum, uma substância partilhada que nos torne semelhantes. O que há são formas distintas de existir, múltiplas perspectivas que definem realidades também múltiplas. O outro, nesse contexto, não é quem pensa diferente, mas quem vive num mundo diferente.
A lição que se extrai daí é precisa e preciosa: a diferença não se reduz à opinião ou ao gosto, e sim a formas de habitar o real que não se deixam traduzir facilmente. E, talvez por isso, o primeiro gesto ético diante do outro seja não compreendê-lo, mas suportar o fato de que ele não cabe no nosso modo de ver.
Vivemos um tempo excessivamente marcado por filtros. Tudo parece destinado a aparecer como já sabido, familiar, encaixado num vocabulário previsível. Mas o que resta da experiência quando ela deixa de ser interrogação? A vida empobrece quando só confirma nossas expectativas. É por isso que precisamos do outro, não como companhia, mas como risco.
Não se trata aqui de nenhuma exaltação do conflito ou da diferença pela diferença. Ao contrário: trata-se de preservar a possibilidade de sermos afetados por aquilo que nos escapa. Isso exige outra escuta. Outro tempo. Outro modo de relação.
Quem já parou para ouvir alguém dizer algo que não se esperava, não porque fosse chocante, mas porque escapava à gramática habitual, sabe do que falo. Há uma dignidade silenciosa no desconcerto. E também uma responsabilidade: não reduzir o outro a um tipo, um erro, uma exceção.
Na vida comum, os encontros verdadeiros são raros porque custam caro. Implicam em abrir mão de nossas próprias repetições. Mas, quando acontecem, quando realmente somos impedidos de nos repetir, talvez seja ali que alguma forma de liberdade se insinue.