Em alguns dialetos italianos antigos, especialmente nas variações napolitanas, existe uma palavra que não corresponde exatamente ao que entendemos por “hora”. Ora não é simples marcação de tempo. É o instante carregado de presença, o agora denso, aquele que não é medido pelo relógio, mas pelo corpo. É o tempo que se sente, não o que se calcula.
O intraduzível dessa palavra não está no som, mas na precisão da experiência que ela exige. Ora é o oposto do automatismo, o oposto da pressa. É o instante que se expande quando decidimos habitá-lo. E, paradoxalmente, é justamente esse instante que nos escapa no mundo de hoje, porque tudo é excessivo.
Vivemos uma época em que o presente se tornou o lugar mais inabitado da vida. A memória está amarrada ao passado, ruminando culpas, reorganizando episódios, buscando explicações que nunca chegam. A cabeça, inquieta e veloz, se projeta constantemente para o futuro, expectativa perene, urgência sem rosto, promessa que nunca se cumpre. É como viver em duas direções ao mesmo tempo e, ainda assim, em nenhuma.
Ansiedade é isso: estar sem estar. O corpo parado, a alma em fuga.
O agora transformado em corredor.
Nesse cenário, ora aparece como palavra-resgate. Ela não nos chama à contemplação romântica nem ao “viver o momento” das frases prontas. Ora pede outra coisa: presença encarnada. A aptidão à poesia do que está acontecendo agora, mesmo que o agora seja difícil, pesado, áspero.
Recuperar ora não é forçar calma. É desacelerar a percepção. É devolver ao instante a sua profundidade. Um gole de água bebido com atenção. A luz entrando pela janela sem pedir para ser vista. O som dos passos no caminho. O corpo respirando, não como técnica, mas como evidência.
Porque o presente não precisa ser grande para existir. Ele precisa ser percebido. E essa percepção é a primeira forma de coragem.
Há uma pergunta implícita em ora: o que pode recuperar a presença?
Talvez não seja um gesto heroico, nem um método. Talvez seja apenas o retorno ao corpo, ao chão, ao detalhe mínimo que nos devolve ao que é concreto. O que interrompe a ansiedade não é a promessa do futuro, mas a ancoragem do instante. O que desfaz a culpa não é o esquecimento, mas o cuidado com o agora que ainda pode ser vivido.
Ora é uma palavra que devolve peso ao presente sem torná-lo opressivo. É o contrário do excesso. É o suficiente. O ponto em que podemos pousar sem fugir.
O tempo cronológico continua lá, com seus minutos e cronômetros. Mas o tempo da vida, o tempo que nos faz existir, acontece apenas no ora. Só ele tem espessura, cheiro, superfície.
O resto é espera.
A intraduzibilidade de “ora” está nisso: não há palavra que coloque o corpo de volta ao instante. Mas há palavras que lembram que o instante existe. E essa lembrança, quando chega, é sempre agora.