Vivemos sob o império do relógio, mas não apenas. Vivemos submetidos à tirania de uma única forma de conceber o tempo: linear, cumulativa, orientada por metas, controlada por dispositivos que convertem duração em valor. Trata-se de um modelo temporal que se apresenta como natural, mas que é, na verdade, uma construção histórica, política e colonial de alta eficácia. Essa ficção de tempo, estruturada pela lógica do progresso e da produtividade, ensinou-nos que o passado deve ser superado, o presente otimizado e o futuro conquistado. No entanto, o que ela invisibiliza é que nem todos os povos, nem todos os corpos, nem todas as vidas operam sob esse mesmo regime de temporalidade.
Eduardo Viveiros de Castro, ao escutar as cosmologias indígenas das Américas, desloca radicalmente essa hegemonia. Para os povos ameríndios, o tempo não é um rio que corre em linha reta rumo ao avanço, mas uma entidade viva, que se dobra, retorna, se curva e se transforma. Um tempo que não se mede com precisão, mas se atravessa com atenção. Um tempo que não se racionaliza, se sente, se canta, se sonha, se ritualiza. Em outras palavras: o tempo, para essas cosmologias, não é recurso. É espírito. É relação entre mundos, entre corpos, entre mortos e vivos, entre memória e invenção.
Na modernidade ocidental, o tempo foi convertido em métrica e em instrumento de gestão da vida. O calendário tornou-se um dispositivo de organização da produtividade. O relógio passou a funcionar como ferramenta de disciplinamento subjetivo. O tempo deixou de ser vivido e passou a ser controlado, de forma muitas vezes violenta. Não por acaso, o tempo moderno expulsa o corpo da experiência: a infância tem que acelerar, como se já estivesse atrasada para a performance; a velhice precisa provar que ainda é útil, como se a lentidão fosse um erro; o cansaço precisa ser vencido; o descanso, merecido. Viver tornou-se sinônimo de produzir. Pausar tornou-se suspeito. A lentidão passou a ser tratada como falha ética, e não como possibilidade de presença.
É importante compreender que essa imposição temporal não é apenas um costume cultural ou uma consequência do capitalismo, trata-se de uma disputa ontológica. A modernidade ocidental promoveu uma guerra silenciosa contra todas as outras formas de conceber o tempo. Colonizar não foi apenas ocupar o espaço dos outros, mas capturar seus ritmos. Acelerar povos, seccionar ciclos, interditar rituais, apagar calendários sagrados, tudo isso foi parte da máquina de dominação. Substituiu-se o tempo como relação viva por um tempo abstrato, homogêneo e universal. O resultado disso é o colapso que hoje se anuncia em várias camadas: ecológica, subjetiva, espiritual.
Ao pensarmos o tempo a partir das cosmologias ameríndias, não estamos falando de um retorno ao passado ou de um romantismo antropológico. Estamos falando de escuta. De abertura real a mundos que continuam dizendo, ainda que não falem com as palavras que esperamos. O tempo, nesses mundos, circula entre sonhos e safras, entre os cantos da floresta e os conselhos dos ancestrais. Um tempo que não se opõe ao ser, mas o compõe. Um tempo que não precisa da urgência para existir. Um tempo que permite que a vida tenha ritmo, e não apenas função.
Nesse sentido, a crítica contemporânea ao regime da produtividade, como vemos nos trabalhos de Byung-Chul Han, dialoga com esse gesto mais radical de Viveiros de Castro: a denúncia de que o tempo que nos habita não é apenas fonte de exaustão, é fonte de violência epistêmica. Vivemos num tempo que nos retira do tom da própria experiência. Um tempo que exige resultados, mas não permite presença. Um tempo que cobra sentido, mas não sustenta silêncio. Um tempo que nos empurra para a aceleração contínua, enquanto algo dentro de nós pede trégua, pausa, outra cadência.
É nesse ponto que a pergunta mais urgente talvez não seja: “Como gerenciar melhor o meu tempo?”. Mas sim: “De quem é o tempo que estou vivendo?”. Se o tempo for apenas uma ferramenta de extração de valor, nossa vida será reduzida a uma sequência de entregas. Mas, se o tempo ainda puder ser espírito, talvez ainda seja possível respirar fora da grade. E nessa fresta entre o tempo que mede e o tempo que vibra, talvez se inscreva a única chance de reconexão com o que ainda pulsa em nós, apesar de tudo.