“Todas as imagens vão desaparecer”, escreve Annie Ernaux. E não se trata de nostalgia, mas de um aviso quase clínico sobre os tempos que vivemos. Em um mundo saturado de registros, de arquivos, de narrativas instantâneas, o que parece escapar é justamente aquilo que deveria ser mais íntimo: a experiência vivida.
A sociedade do desempenho, como nomeia Byung-Chul Han, transformou-nos em sujeitos de produção permanente. O tempo tornou-se matéria-prima de performance: cada gesto precisa render, cada descanso precisa ser funcional, cada instante precisa ser aproveitado. E nessa engrenagem, até o silêncio se torna incômodo, até o ócio parece erro.
Han nos alerta que vivemos na era da transparência, onde tudo precisa se mostrar, se explicar, se justificar. A lógica da visibilidade impera. Mas quanto mais expomos, menos habitamos. A memória se transforma em armazenamento; o instante, em dado; a vida, em vitrine.
É por isso que a frase de Ernaux não soa apenas como constatação, mas como convite. Se todas as imagens vão desaparecer, o que restará? Talvez o que não se arquiva: o pensamento que não virou post, a conversa que não foi gravada, o olhar que não se converteu em selfie. Resta o que só existiu no corpo, no tempo partilhado, no intervalo não monetizado entre duas tarefas.
Talvez reste aquilo que não buscamos capturar — e por isso mesmo, nos tocou de modo mais profundo. Um gesto esquecido, uma pausa sem objetivo, uma manhã em que nada aconteceu e, ainda assim, houve presença.
Resgatar o valor do que escapa — isso é mais do que contemplação: é resistência. É recusar a ideia de que tudo que importa precisa deixar rastro. É defender o direito ao instante despercebido, ao tempo não produtivo, ao silêncio sem função.
Se todas as imagens vão desaparecer, que reste ao menos o traço invisível de termos vivido — não para figurar na lembrança alheia, mas para termos, de fato, habitado o tempo.
fred. (Frederico Oliveira)