Ao contrário do que se pensa, se é que se pensa nisso, é mais difícil do que parece articular a tessitura do relacionamento interpessoal nos filmes históricos. Neles, o cineasta deve ater-se aos fatos tanto quanto possível. Ao invés de as personagens direcionar-lhes e dar-lhes conteúdo, eles é que impõem sua orientação e modo. Não deve mais o cineasta do que acompanhá-los, fiel a seu encadeamento, que, por verídicos e pretéritos, não podem ser criados e desenvolvidos arbitrária e demiurgicamente. Eles o precedem, inapeláveis e inalterados.
Provavelmente, por isso, mais raras do que o usual são as obras-primas cinematográficas de cunho histórico. Por essa razão, certamente, poucos grandes cineastas aventuram-se a realizar filmes do gênero. Seus diretores não usufruem da plena autonomia existente em outras áreas, de criar e conferir aos fatos e às personagens suas ideias, intenções e propósitos.
Quer se queira quer não, as ocorrências preexistem, deixando os rastros de sua passagem (que não podem ser apagados ou redirecionados), devendo ser seguidos e não fazê-los seguir as personagens.
Quando os protagonistas dos acontecimentos são figuras que seus feitos e a História engrandeceram, mais ainda limitado apresenta-se o livre arbítrio autoral.
Observa-se, pois, essa espécie de camisa de força nos filmes históricos em geral, a exemplo de Quilombo (1983), de Carlos Diégues (Maceió/Al, 1940 – Rio de Janeiro/RJ, 2025).
Dele participam personagens que o passar do tempo valoriza. Ganga Zumba, o primeiro líder de Palmares, e Zumbi, seu sucessor, ganham cada vez mais as auréolas da posteridade, tanto por sua capacidade de liderança quanto pelos propósitos que os guiaram, mesmo que, a teor do filme, o primeiro tenha se iludido com as intenções da classe branca dominante e que o segundo não tenha, junto com seu staff, conseguido neutralizar o previsível desenrolar do ataque de Domingos Jorge Velho, prevendo (e provendo) seus desdobramentos e consequências.
O filme constitui a narrativa cronológica do desenvolvimento do quilombo dos Palmares, localizado na serra da Barriga, no Estado de Alagoas, com catorze povoações e cerca de dois mil habitantes, sendo o mais famoso dos inúmeros existentes no país, a exemplo do quilombo do Ambrósio, nas divisas da região do Triângulo – então pertencente a São Paulo e depois a Goiás – e Minas Gerais, situado na área do atual município de Campos Altos e seus vizinhos, com população média de quinhentas pessoas e que algumas informações elevam a mil habitantes e cuja destruição demandou nada mais nada menos de treze anos (1746 – 1759), entre preparativos, intervalos, escaramuças e combates, segundo o historiador Edelweiss Teixeira (O Triângulo Mineiro nos Oitocentos. Uberaba. Integraff Editora, 2001, p. 60/61).
Como todo (ou quase todo) filme histórico, mistura fatos dessa natureza com miúdos episódios pessoais, domésticos e familiares, enfatizando os destinos individuais inseridos no contexto histórico, condicionando-os aos mesmos preceitos e parâmetros dos dramas comuns e anônimos.
Essa faculdade, no entanto, nesse como nos demais filmes históricos em geral, por força da orientação que a preside e o sentido que se imprime à sua prática, ao invés de abrir legítimas possibilidades dramáticas, contribui para diluir e enfraquecer o entrecho histórico e a participação nele de seus protagonistas.
Mesmo assim, em Quilombo, tem-se um Ganga Zumba tolerante e conciliador e, por isso, suscetível de enganos e fraquezas, e um Zumbi enérgico e ágil, porém, transmitindo a impressão de negligência estratégica.
Contudo, ao nível dos relacionamentos pessoais, o filme queda-se naturalista, mimetizando ou copiando suas manifestações exteriores mais explícitas, destituído da sutileza e da densidade que encerram e expõem os significados mais profundos e recônditos dos comportamentos individuais e coletivos.
Enfatiza, porém, como não poderia deixar de ser num caso em que a realidade e a História incumbiram-se de consolidar e glorificar, a ânsia de liberdade dos quilombolas, comum e ínsita na natureza do ser humano, sendo que “a história do ser humano é a da sua repressão”, segundo Godard (1930-2022) no filme Le Gai Savoir (1968), não passando, por isso, a História mais do que a luta permanente da liberdade individual contra a opressão dos diversos sistemas econômicos representados pelos Estados e Governos que se sucedem com seus métodos próprios até desaguar, atualmente, no refinamento global antevisto no livro 1984 (de 1948), de George Orwell (1903-1950), e no filme Fahrenheit 451 (Grã-Bretanha, 1966), de François Truffaut (1932-1984), que só se diferenciam e se diversificam nos fatos, modos e métodos, não na essência.
O filme de Diégues, pois, exalta um dos episódios mais ilustrativos e autênticos dessa luta milenar. Como cinema caracteriza-se não só pela linearidade narrativa como também pela utilização de recursos variados para torná-la palatável ao público, com o que Diégues exime-se de infundir ao filme cunho pessoal.
Guido Bilharinho
Advogado em Uberaba e editor das revistas culturais eletrônicas Primax (Arte e Cultura), Nexos (Estudos Regionais) e Silfo (Autores Uberabenses)