Relembrando o artigo da semana anterior, iniciamos nossos encontros sempre com muita tinta, muita cor e sem forma. Depois de muita bagunça generalizada, uma cena foi tomando corpo e sendo dramatizada por nós: eu era a mãe de uma boneca que precisava ir à medica para uma consulta. No consultório, a boneca era despida e a doutora aplicava injeções e curativos. Para dar realidade aos ferimentos da boneca, muita tinta vermelha e marrom era passada nela, que depois recebia as faixas. Nem é preciso dizer que a boneca resistia aos tratamentos e chorava muito, a ponto de termos que usar de força para que ela permitisse os procedimentos.
Esta vinheta nos mostra como o sintoma aparece como designativo de um impasse. Impasse esse que deveria ser suportado e sustentado pelos pais, e não o são. Impasse porque esta criança estava frente a frente com a força destrutiva do ódio e do impulso destrutivo ao mesmo tempo em que desejava ser amada e aceita e, para tanto, não poderia odiar nem tão pouco destruir. Seu pânico não era resultado da violência do outro sobre si mesma, mas do pré-sentimento do ódio sendo vivenciado e do sofrimento que gostaria de infligir ao outro; pânico frente à percepção mesmo que obscura do “animal” violento que existia em si mesmo.
Brincar com as tintas é expressar emoção, brincar com as cores é expressar emoção pura, sem o controle da razão ou de outros impasses. Ao nos lambuzar de cores, com meu apoio e participação, pode dar vazão a todo o ódio sem o medo da punição, que poderia vir em seguida, numa outra situação e com outras pessoas; era poder odiar sem sofrer retaliações como a perda do amor e o repúdio do outro. Existe também outro significado emergente: ao usar as bonecas pintadas, entrou no campo da simbolização ou, em termos psicanalíticos, da neurotização do afeto. As bonecas representavam os objetos do impulso destrutivo, as cores representavam as feridas, os resultados do ódio e do impulso de morte e eu era sua cúmplice, sua aliada nesta crueldade – aquela que permitia a violência ao mesmo tempo em que sofria ao ver a dor que sua filha sentia. Também era muito importante a imortalidade das vítimas, pois as bonecas por mais feridas e torturadas, no encontro seguinte estavam limpas e vivas, haviam resistido a todo o ódio sofrido e assim mereciam ser amadas.
A vinheta apresentada mostra a criança vivendo esse prazer de destruir, que, no entanto, é desprazer de ser amada e aceita. É a própria experiência do dilema fundamental: cumpre o ódio e perde o amor e a admiração daqueles de quem depende.
(*) psicóloga e psicanalista