ARTICULISTAS

Aversão diante das atrocidades da guerra

Ilcea Borba Marquez
Publicado em 09/05/2023 às 19:02
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Sêneca em Hercule Sur Oeta conta que a lira de Orfeu tinha o poder de mudar a natureza das coisas violentas: os leões vêm comer nas suas mãos, as torrentes se transformam em riachos, os ventos se tornam brisas, etc. É reconstituído assim um tempo edênico, sem violência e sem ódio. A lira de Orfeu, figura emblemática da música, permite compreender a função cultural da arte evocada para dar conta da recusa da guerra pelos pacifistas. A lira de Orfeu inaugura um mundo no qual “tudo é ordem e beleza” e onde os efeitos da castração parecem suspensos. Assim, a beleza sublime avatar do Bem parece em condições de iniciar entre os seres um laço pacificado desprendido do seu intrinsicamento fatal com a morte. Seria essa a última esperança confiável?

Deve-se observar que o ato de Orfeu que se apresenta nos exteriores de uma extrema calmaria é, na realidade, conduzido por uma vontade perversa de extrema violência, posto que ele tem por efeito desnaturar os seres e as coisas, confiscando-lhes não tal ou qual atributo, mas a própria essência dele, o que a ficção poética configura uma subversão da ordem do cosmos. Assim, sob a máscara de um Eros purificado, a beleza na realidade introduz uma nova figura da morte – a encarnação das forças da vida, que confirma que a desintrincação das pulsões se realiza sempre em benefício da morte. Ou seja, que ao preço do desejo e da morte o homem está condenado à guerra e à vadiagem.

Após o desaparecimento do homem bárbaro e o desaparecimento do homem civilizado, talvez o mundo venha a ser um dia povoado por uma terceira espécie, composta de indivíduos pacificados que não serão nem animais, nem homens. Essa desnaturalização do homem selvagem primitivo realizada pela civilização não é outra coisa que a reprodução de metamorfose operada por Orfeu nos seres e nos elementos.

Quando o homem experimenta um movimento de recuo diante das crueldades perpetradas em tempos de guerra, é sempre porque no lugar das vítimas ele vê um de seus familiares ou o filho de um amigo. É então a sua própria imagem ferida na imagem do outro que suscita a sua emoção e a sua aversão. Nesses momentos, o sofrimento das vítimas é vivido como um ataque ao narcisismo da testemunha. Nossa sensibilidade moderna não nos permite mais suportar aquilo que deleitava nossos ancestrais: jogos de circo romanos ou pauladas entre cegos encenadas pelas massas na Idade Média. “Só podendo fazer o que é justo foi forte, fizemos com que isso que é forte fosse justo.” (Freud). Ou ainda: o paraíso não é feito para os pecadores.

Ilcea Borba Marquez
Psicóloga e psicanalista
e-mail: ilceaborba@gmail.com

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