Um dia, fazendo compras em família num supermercado, a mãe da garota ficou subitamente muito zangada com ela, e a menina sentiu-se completamente arrasada pelo modo de agir da mãe. A caminho de casa, a mãe continuou a recriminá-la com raiva, dizendo-lhe que ela não servia para nada. A garota ficou convencida de que esta pessoa violenta apenas se parecia com a mãe, e embora fingisse ser ela, realmente era uma malvada, um ser de outro mundo, uma impostora de aparência semelhante, que sumira com a mãe e assumira sua aparência. Daí para frente, a garota assumiu em várias ocasiões diferentes que esta “outra mãe” ou a má-drasta raptara sua mãe verdadeira e tomara seu lugar para torturá-la como a mãe real nunca faria.
Esta fantasia prosseguiu por um bom tempo, durante todo o período em que a menina sentia necessidade premente de segurança e para isso a mãe teria de ser toda-boa – nunca raivosa ou rejeitadora. Nestes momentos ela reorganizava a realidade de forma a se prover do que necessitava. Quando ficou mais velha e mais segura, a raiva de sua mãe ou a crítica severa não lhe pareciam mais tão devastadoras. Como sua própria integração se estabelecera melhor, podia dispensar a fantasia asseguradora de uma “mulher de outro mundo”, refazendo a imagem dupla da mãe (a mãe e a má-drasta) numa só. Afinal todos são bons e maus ao mesmo tempo!
Na psicanálise reconhecemos também, na puberdade, fantasias reconhecidas como “romance familiar”. São fantasias ou devaneios que o jovem reconhece parcialmente como tais, mas nos quais também acredita parcialmente. Centralizam-se na ideia de que os seus pais verdadeiros, por alguma razão infeliz, não puderam criá-lo e entregaram-no a estes que alegam serem seus pais. A expectativa esperançosa da criança é a de que um dia, por acaso ou por designo, o pai verdadeiro aparecerá e ela será elevada, por direito, a sua condição sublime e viverá feliz para sempre!
Estas fantasias ajudam. Não apenas como uma forma de preservar a mãe interna ou os pais totalmente bons, permitindo ainda à criança ter raiva da “madrasta” malvada ou dos adotivos sem comprometer a boa vontade dos verdadeiros, que são encarados como outros e diferentes. A fantasia da madrasta malvada não só conserva intacta a mãe boa, como também impede a pessoa de se sentir culpada a respeito dos pensamentos e desejos raivosos quanto a ela – uma culpa que interferiria seriamente na boa relação com a mãe.
Desde o início, a vida amorosa humana é desafiante e dolorosa uma vez que exige a aceitação do indesejável e ameaçador no outro e, tanto na infância quanto na vida adulta a capacidade imaginativa do homem é fator imprescindível para o processo adaptativo e renovador, uma vez que os desejos do sujeito se encontram na base do ser do outro.
(*) Psicóloga e psicanalista ilceaborba@netsite.com.br