O ódio apresenta múltiplos semblantes – pode ser deduzido tanto da psicopatologia da vida cotidiana, ou seja, das atividades comuns e banais do dia-a-dia, quanto do exercício do poder e da submissão. Àqueles que tentam negar a importância e presença constante do ódio nas ações humanas basta ligar a TV num domingo à tarde para ver as vídeos-cacetadas assim, fatalmente acompanhará, por exemplo, as agressivas relações entre os irmãos onde o mais velho e mais forte sempre submete o mais novo, aproveitando da desigualdade de força e tamanho entre eles. A disposição interior para buscar a morte, assim como a agressividade assassina contra um adversário designado constituem forças de destruição que realizam sua obra no psiquismo individual e na comunidade humana.
O ódio está sempre ligado a um sofrimento corporal e mental excessivos.
“O sofrimento e o ódio encontram-se em um determinismo circular, no qual o sofrimento torna-se causa de ódio e o ódio causa de sofrimento” (Enriquez, 1999). Dessa forma a experiência plena de angústia mortífera coloca em movimento uma força destrutiva que objetiva tudo destruir – inclusive a si mesmo – suscitando desprazer, sofrimento e desespero.
O nascimento é vivido como cisão ou ruptura e perda, portanto, fonte de sofrimento e experiência de ódio. O bebê repousa no ventre da mãe e o nascimento, enquanto desligamento, opera por uma catástrofe brusca uma expulsão pela qual ele desprende da mãe corporal. O corpo da mãe é para o feto o universo e “saindo das trevas incandescentes do caos, a criança humana entra na criação fria e clara, embora sem a possuir ainda.” (Bion) Há muito o nascimento é compreendido como primeira experiência traumática e raiz de todas as outras. É doloroso e angustiante, é desagradável e mortífero, é consequentemente oportunidade de ódio.
Para amenizar a sensação de angústia primeira o homem cria mitos ou ainda mitos sobre a mulher. Entre os povos muito primitivos, a mulher por ser possuidora de características como menstruação, gestação, parto e amamentação, representa a própria natureza divina e era considerada a encarnação do mistério e das coisas sagradas. Era por isso temida, vista com ambiguidade, com duplicidade, com capacidade de transformação e de criação de novos seres. Era equiparada à sacralidade da terra, de cujo corpo corre água-sangue, cujas raízes são seus ossos, cujas plantas são os seus cabelos e cujos frutos são seus filhos. Nesta equiparação à mãe-terra, sacrifícios humanos eram comuns nas cerimônias agrícolas, objetivando a autorização de procriação como também para a promoção da fertilidade humana. (continua)
(*) psicóloga e psicanalista