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Homem Cordial

Logo que chegou ao Brasil, Contardo Calligaris lançou um livro onde nos caracterizava como “Homem Cordial”. Com isso se referia a uma característica do povo brasileiro de ser cortês

Ilcéa Borba Marquez
ilcea@terra.com.br
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 20/12/2022 às 11:40
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Logo que chegou ao Brasil, Contardo Calligaris lançou um livro onde nos caracterizava como “Homem Cordial”. Com isso se referia a uma característica do povo brasileiro de ser cortês e bem-educado com todas as pessoas, principalmente as desconhecidas e estrangeiras. Explicando a causa, ele enfatizava o fato de termos sidos colonizados pelos portugueses e outros europeus e então considerados selvagens e primitivos, o que, aliás, justificava até mesmo a invasão e apropriação das riquezas encontradas, e, por outro lado, nos colocava como inferiores aos colonos – cristãos e civilizados. Assim, pela cordialidade, nos identificávamos aos novos senhores e nos sentíamos civilizados, educados tal como eles. No entanto, esta atitude marcava uma diferença, já que os europeus tratam os desconhecidos ou estrangeiros de forma inamistosa e distante, com desconfiança e parcimônia.

Este mesmo homem cordial nas atuais situações familiares e entre conhecidos porta-se completamente diferente e chega mesmo a ser totalmente intratável no relacionamento com servidores ou funcionários, que ele percebe como inferiores. Hoje em dia a submissão pacífica dos antigos serviçais-escravos transformou-se em rebeldia indomável e agressividade violenta, que por pouco não se torna violência física. Qualquer um que receba um limite ou avaliação negativa imagina-se no lugar de vítima e torna-se o carrasco agressor sem se dar conta plenamente da situação.

Há poucos dias presenciei uma cena paradigmática destas considerações acima: um adolescente (20 anos), ao receber um resultado de exame em desacordo com suas expectativas, retorna ao local, acompanhado por sua mãe, e juntos dão início a uma série de reivindicações agressivas que objetivavam a anulação do resultado, tido por eles como verdadeiro insulto frente a um outro desejado e, no entanto, não conseguido. Durante a discussão, percebia-se a fúria materna pela crítica ao seu pequeno deus, perfeito e inatacável aos seus próprios olhos. A todo instante era visível o simbolismo de suas palavras: como ousam dizer estas coisas deste ser privilegiado! Ele é infalível, não tem defeitos! O desempenho abaixo do esperado e exigido foi sentido como ofensa pessoal tanto à mãe quanto ao seu “pequeno e endeusado filhinho”! Da antiga cordialidade não encontramos nenhum vestígio, apenas a fúria liberada pelo direito auto-outorgado, fruto de uma autolatria que impede a autocrítica e nos leva de retorno ao autóctone.

 

(*) psicóloga e psicanalista

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