ARTICULISTAS

Mais estranho do que a ficção

Tragédia ou comédia; continuidade da vida ou inevitabilidade da morte; real ou imaginário

Ilcéa Borba Marquez
ilcea@terra.com.br
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 20/12/2022 às 13:08
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Tragédia ou comédia; continuidade da vida ou inevitabilidade da morte; real ou imaginário – dois polos opostos que finalizam uma história e ensejam redirecionamentos do viver! O filme apresentado se situa entre a comédia e a tragédia, dando aos cinéfilos, corrompidos dos pés até a alma com a ditadura do cotidiano, a oportunidade de chocar-se com o retrato de si mesmos na tela ainda a tempo de mudar drasticamente seus destinos. Um filme com personagem incrivelmente human levanta-se pontualmente, escova seus dentes obsessivamente, de acordo com suas crenças e paradigmas, dá o laço em sua gravata dentro do tempo estipulado e se dirige ao ponto de ônibus com uma maçã verde na boca, sempre a ponto de perdê-lo e vai trabalhar. Sua rotina diária é detalhadamente prevista, facilitada pela sua capacidade de efetuar cálculos mentais surpreendentes.

O roteiro salienta inusitada importância a um ato banal na vida de todos: acompanhar o dia pelas horas apontadas no relógio. Pela metafísica, um poder e uma vontade são dados ao relógio, que passa então a comandar a trama de encontros e desencontros e até mesmo a morte ou possibilidade de vida do personagem central Harold Crick, que acorda numa quarta-feira supostamente comum que, no entanto, começa pelo surgimento de uma voz feminina narrando-lhe todos os pormenores do seu dia.

Descartada a possibilidade de uma crise esquizofrênica, Harold é orientado a procurar um professor de literatura ou um sábio/analista, que vive no limite da loucura e da saúde, entre xícaras e xícaras de café, e atividades acadêmicas ou recreativas. Na vertente analítica/psicopatológica, ele lhe revela os sintomas obsessivos/compulsivos: contagem repetitiva dos degraus, dos ladrilhos, dos conteúdos de sabonete existente nos recipientes; na vertente literária, o professor o aceita como cliente/orientando quando este lhe revela o que ouviu na narrativa: “mal sabia ele que aquele simples gesto acarretaria o fim de sua própria vida” ; este é o momento solene que possibilita a entrada na relação de um outro que saberia responder “alguma coisa que o personagem não sabe”.

Juntos, eles dão início a um processo de desvendamento linguístico que preencheria as lacunas do discurso do cliente. Aos poucos se descobre a verdade e a lógica do discurso se evidencia. (continua)

psicóloga e psicanalista

eilcea@terra.com.br

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