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Mais estranho do que a ficção - II

Uma história dentro da outra: Kate Field, a escritora, divide o filme com o Auditor Sênior da Receita Federal encenando sua enorme dificuldade momentânea

Ilcéa Borba Marquez
ilcea@terra.com.br
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 20/12/2022 às 13:01
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Uma história dentro da outra: Kate Field, a escritora, divide o filme  com o Auditor Sênior da Receita Federal encenando sua enorme dificuldade momentânea de conceber criativamente as últimas passagens do livro e roteiro do filme. Seus editores mandam-lhe uma secretária para ajudá-la neste processo de escritura. A caracterização de cada uma das personagens opõe-lhes simbolicamente: a primeira é frágil, branca, fumante compulsiva e com expressão fisionômica de dor e esforço prolongado; a outra é negra, forte, decidida e competente, verdadeira rocha humana, suas roupas masculinizadas em azul e lilás expressam a defesa da angústia pelo autocontrole.

Serão os sábios compulsivos? Tanto o professor quanto a escritora exibem atos compulsivos de beber e fumar, respectivamente. Ele se apresenta seguro e forte e ela, insegura, angustiada, fraca e um pouco desligada da realidade que a cerca. Parece-me que, neste momento, o produtor enseja a apresentação de personagens ligados à oralidade: falar, escrever, fumar e comer – ações representativas de uma oralidade compulsiva.

Ao ir verificar as declarações de renda de Ana Pascal, Harold descobre o amor e o desejo por uma padeira que se mostra seu oposto – é descontraída, de fácil relacionamento social, produz e vende o que mais sabe fazer, é segura e livre, vive de acordo com suas crenças e vontades, mesmo que isso signifique a contravenção. O relacionamento que se inicia pela vertente do ódio e ressentimento, aos poucos, mostra sua verdadeira face, principalmente a partir do momento que ele gagueja, perde o jeito, revela insegurança e, finalmente, declara seu interesse e paixão; quando consegue aproximar-se dos seus sonhos enterrados e reencontra o antigo interesse pelo rock e pelos Beatles, a conquista da mulher se efetiva e os dois encenam o amor, abrindo a possibilidade de ser tudo uma comédia – final feliz.

Os personagens salientam a importância das mudanças em direção ao realizar-se plenamente, quebrar a rotina, criar objetivos e metas plenas de prazer; tudo isso a partir do momento em que se impõe como verdade implacável a finitude da vida e a eminência inevitável da morte. A lição de vida é que só a morte dá sentido à vida.

A proposta deste roteiro também é um questionamento metafísico e metapsicológic o relógio tem atitudes humanas plenas de emoção, e Harold é uma verdadeira máquina – um robô rígido e disciplinado, sem nenhuma manifestação emocional. Sua fisionomia revela tédio, indiferença, frieza e vazio interior.

 

(*) Psicóloga e psicanalista

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