Em documentário sobre Aretha Franklin, exibido pela Film&Arts e proibido durante 47 anos de ser lançado, assistimos emocionados à apresentação de uma “diva” da música Gospel e Soul interpretando seus sucessos sob forte comoção e de todos que o viam cantar na pequena igreja que se tornou palco do evento.
As músicas apresentadas são sucessos conhecidos mundialmente, que reconhecemos de imediato na medida em que Aretha cantava principalmente “Never Grow Old” (Live at New Temple Missyonare). Na época da produção deste filme, Aretha estava com câncer de pâncreas. Assim, o material deixou de ser comum e passou a lidar diretamente com o tema da mortalidade pessoal e de cada um, aumentando ainda mais a experiência religiosa ao fazer alusão à eminência da morte, da saúde e da doença, sustentadoras da busca de amparo na esperança de vida eterna, um lugar onde viveríamos para sempre na companhia do Senhor: experiências significativas e altamente fragilizantes na vida de todos. Por outro lado, ela se caracterizava por ser exigente consigo mesma e a sua arte. Na época, tinha expectativas de fazer sucesso como artista de cinema, como suas musas inspiradoras Barbra Streisand e Whitney Houston.
Refletindo sobre o documentário, percebi que atualmente não temos mais a força da devoção evidenciada nas cenas que mostram uma artista cantando sua devoção e contaminando a todos que a viam cantar, até mesmo nós, os expectadores atuais distantes da cena, mas virtualmente na mesma wibe do sentir.
O que podemos falar sobre nosso tempo, em que jovens descrentes são jogados em experiências consumistas e virtuais que ditam novos valores instáveis do aqui e agora, diferentes dos tempos anteriores de valorização da glória, da honra e da reputação. Estes apontam o renome que se tem à imagem que têm – a imagem pública que se opõe à intenção; quando os outros valorizam ou depreciam pelo que é visível, não importa o sentimento, o que existe no mais íntimo. Um ato pode ser admirado, pode dar relvo social a uma pessoa e, no entanto, dever-se a motivos vis; ou o inverso. As religiões cristãs, em especial preocupadas com a salvação do indivíduo, destacam as intenções em detrimento do lado público dos atos. O que importa não é o que se é, mas o que parece ser. Vamos relembrar uma frase famosa: para um homem parecer ser honesto, convém ser honesto. As aparências não bastam, mas sem elas de nada vale a verdade íntima. O documentário mostra pessoas que gritam, choram, cantam, batem palmas e até dançam... estão em sintonia, ligadas pela crença, cantando sua devoção, num espaço de reconhecimento mútuo, estruturado onde cada um tem um papel reconhecido e valorizado – uma família.
Ilcea Borba Marquez
Psicóloga e psicanalista
E-mail: ilceaborba@gmail.com