Vejam se reconhecem a seguinte propaganda: um casal chega para uma festa familiar de fim de ano com a habitual distribuição de presentes. De imediato somos surpreendidos pela diferença de idade entre o senhor e sua esposa – ela parece ser bem mais nova do que ele. Depois das trocas de presentes e, acompanhando seus pensamentos, nos inteiramos um pouco da história daquele casal: o perfume que ela ganhou é o mesmo que sempre usou e provoca imagens anteriores de cenas vividas agora existentes como recordações. Neste momento, ele esclarece que continua a vê-la como ela era, portanto, bem mais nova. Numa última cena os dois aparecem nos dias atuais dançando, demonstrando grande afeição e sem a diferença de idade mostrada anteriormente.
O Aparelho Psíquico nada mais é do que um aparelho de memória; sendo assim, tudo que está disponível ao pensamento consciente é fruto da internalização de imagens, sons, afetos positivos ou negativos, onde reconhecemos resíduos de experiências vividas. Mas, se o aparelho de memórias não cria o novo, ele, no entanto, mistura, confunde, amplia e estende, transformando tudo a ponto de não reconhecermos de imediato as marcas da memória original. O processo de recordação não é simplesmente retirarmos do arquivo uma ficha preexistente. Cada novo campo psíquico por onde passa a recordação lhe adiciona suas características fundamentais. A originalidade do aparelho psíquico está aí. Por ele vemos o inexistente enquanto fusão de existentes ou ainda como superposição ao presente.
Muitas situações interessantes decorrem dessas características singulares do aparelho psíquic nós não temos a imagem real da nossa aparência, nem tão pouco a imagem real da aparência de anos anteriores. Ver o espelho ou uma foto é sempre ser surpreendido por uma realidade esquecida ou uma aparência indesejada. Não podemos nos esquecer de que o desejado ou o idealizado se fundem sempre ao real, produzindo enfim recordações permeadas de “realizações de desejos”. Voltar a um lugar importante onde se viveu anteriormente é também ser surpreendido pelas diferenças e sensações de: puxa, como é pequeno. Ou ainda: puxa, como é grande. Elas são comuns. As cenas internalizadas e retidas como memória sofreram o processo de recriação e, assim, o psíquico nos ensina que memorizar não é apenas repetir, e sim oportunidade de recriar. O aparelho psíquico em constante ebulição transforma o original que assim se mantém sempre atualizado. Não existe psiquicamente esta separação temporal: passado, presente e futuro. O presente se impõe pela própria dificuldade de retomar o passado ou prever o futuro.
(*) Psicóloga e psicanalista