ARTICULISTAS

O alferes eliminou o homem

Os apaixonados por literatura reconhecerão neste título

Ilcéa Borba Marquez
ilcea@terra.com.br
Publicado em 12/12/2012 às 19:35Atualizado em 19/12/2022 às 15:50
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Os apaixonados por literatura reconhecerão neste título a ideia central do texto de Machado de Assis – “O Espelho”, onde, para retratar o fato de extrema frequência quando alguém empossado num determinado cargo ou profissão assume o perfil psicológico próprio daquele Machado de Assis, cria um personagem recentemente nomeado para o posto de alferes. Pouco tempo após a nomeação e todos os carinhos, atenções e obséquios recebidos então ocasionaram profunda transformação no interior psíquico do jovem: “...aconteceu, então, que a alma exterior que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava ao posto e nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.”

Hoje podemos também falar de juizite, psicologite, advogadite, medicinite e tantas outras infecções, cujo agente causador nada mais é do que a conclusão de um curso muito sonhado e que, durante muito tempo, ofuscou o mundo e os outros, direcionando cada decisão tomada. São situações em que o perfil profissional ocupa a pessoa de tal maneira que ela se transforma, passando a adotar maneiras de ser próprias do exercício da profissão, mas sempre no lugar da verdade, da prepotência, da arrogância e da superioridade.

Esta patologia não acomete apenas os graduados, mas também os líderes políticos que, devidamente eleitos e empossados, absorvem o atual e temporário papel social, confundindo, a partir de então, o homem e o título político. Neste caso não conseguem mais saber quem sã um ser ou um presidente? Um ser com um cargo ou um cargo com um ser?

É verdade que o prazer vivido no exercício do poder embriaga tanto quanto as mais finas bebidas ou as mais pesadas drogas. Se por um lado é positivo ter a consciência do lugar social que se ocupa em suas vicissitudes consequentes, faz parte da sabedoria não se embriagar narcisicamente nas repercussões poderosas do cargo, pois o que vem depois das ilusões criadas por estas substâncias intoxicantes é sempre o sentimento fragilizante da culpa e da perda. Além de tudo, é importante jamais perder de vista que a onipotência narcísica – o único que tudo pode, sem restrições legais – é apenas um delírio passageiro.

(*) Psicóloga e psicanalista

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