Nascido das mãos de uma excelente escritora, o texto “Kurt Seyit & Shura”, traduzido para doze idiomas, serviu de base para um seriado de enorme sucesso, bem como de vários grupos de debate nas redes sociais. Nermin Bezmen – a autora – afetivamente vinculada ao personagem título, já que sua neta envolve-nos no drama de encontros e desencontros amorosos tendo como cenário os acontecimentos que a partir de 1905 culminaram na Revolução Russa de 2017 ou no Outubro Vermelho. A força disruptiva dos conflitos entre nações pela destruição, morte, fome, violência e sobretudo sofrimento fatalmente inerente às guerras revela e finalmente efetiva os rachas ou falhas de uma sociedade que talvez não se manifestasse em tempos de paz.
Para uma compreensão válida do romance de fundo histórico, precisaríamos ter uma noção da história russa em seus movimentos de conquistas ao longo de muitos anos e governantes. Como os personagens principais originaram-se da aristocracia russa e da Crimeia, vou apenas lembrar que a Crimeia foi anexada à Rússia por Catarina a Grande após luta vitoriosa da primeira e submissão da segunda. No entanto, a Crimeia com suas terras férteis e produtivas manteve a crença mulçumana, sua língua e costumes resultando num grupo diferenciado que se identificava como turco. Kurt Seyit, filho de um nobre abastado da Crimeia, inicia um romance com Alexandra Zhulianovna Verzhensky, aristocrata russa de Kislovodsk em meio às convulsões sociais de 1916 (Cárpatos) em plena Primeira Guerra Mundial.
A paixão que eles viviam tão bem descrita pelas palavras da autora atinge-nos profundamente, levando-nos, seus leitores, a torcermos pelo desfecho positivo que culminaria na estabilidade de uma união matrimonial e pela descendência geracional que poderia, enfim, desfrutar de um mundo novo vitorioso e redimido pelos horrores da guerra. No entanto, os preconceitos de ambas famílias se revelaram intransponíveis e o casal de apaixonados sofre a rejeição. O pai de Seyit não permite nem mesmo a aproximação de Shura com sua família, tratando-a como indigna de conviver com suas filhas, filhos e noras; da mesma forma a família de Shura não poderia saber da vida em comum desfrutada por eles e de fundamental importância para a sobrevivência tanto de um quanto de outro. Os inúmeros entraves acabam por separar definitivamente os apaixonados distanciados apesar do desejo recorrente e inevitável daqueles que encontraram seu par perfeito, eleito pelo sentimento e mantido pela força renovada da paixão de cada encontro. Só posso entender tanta rejeição preconceituosa devido à falta de uma identidade única e dos ressentimentos selados nas derrotas de cada um dos conflitos sanguinários. A guerra não acaba com a vitória de um e a rendição de outro; a mágoa permanece e transparece nos preconceitos.
(*) Psicóloga e psicanalista