Cada retorno a uma obra literária se apresenta inovador e somos tocados diferentemente por outro aspecto ou pelo mesmo de antes, mas de forma nova. Assim aconteceu com o brilhante texto
Cada retorno a uma obra literária se apresenta inovador e somos tocados diferentemente por outro aspecto ou pelo mesmo de antes, mas de forma nova. Assim aconteceu com o brilhante texto de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira”. Na primeira vez, a qualidade literária do mesmo, a capacidade de escrita do autor, foi o que me chamou mais a atenção. Agora, vendo o filme, o relacionamento do oftalmologista e sua mulher, onde podemos ver os distintos papéis feminino e masculino sob a ótica do autor, capturou-me sobremaneira.
As cenas iniciais mostram o casal numa situação típica: o jantar depois de um dia de trabalho, onde fica claro o distanciamento intelectual entre os dois, bem como a incompreensão mútua: se para o homem era difícil acertar qual o prato feito por sua mulher e que ele acabara de comer, ela também não conseguia acompanhar suas inquietações com os últimos desafios de sua clínica. Dois mundos diferentes e incomunicáveis entre si.
Na manhã seguinte, quando a cegueira o ataca, ela toma as iniciativas de levá-lo ao consultório médico e acompanhá-lo na quarentena forçada, mesmo enxergando perfeitamente bem. A partir deste momento, ela se torna a líder do casal e do grupo, que aumenta dia-a-dia. Ela é a guia, a enfermeira, a intérprete e mediadora entre o grupo de cegos e o mundo ao redor. Num certo momento, ele lhe diz: você me alimenta, cuida de mim, limpa minha “bunda” e lava minhas roupas, enfim faz tudo por mim e para mim; dessa forma, não consigo vê-la como mulher ou esposa, mas sim como uma “mãe”. Mais adiante, há a cena da traição quando ele tem relações sexuais com a moça de óculos observada pela mulher traída.
No começo, homem/mulher na tradicional dominação/submissão tão agradável aos homens quanto desagradável às mulheres. Em seguida, a troca de papéis e ela, sustentada pela superioridade que a visão lhe emprestava, assume o comando de tudo, tornando-se a líder do grupo, elemento imprescindível à segurança e manutenção de todos e, por isso, aceita e aplaudida, menos pelo marido, que se sente castrado e inferiorizado diante da mulher poderosa diante da qual só pode ser o filho amado, mas desamparado da época infantil. Nesta situação, não consegue apresentar-se como homem potente, capaz de lhe proporcionar gozo sexual, o que o leva à traição. Mais uma vez, nós nos vemos na situação social do “MEDO DE MULHER”, apresentada e desenvolvida por Winnicott e abordada por mim no artigo sob esse título.
(*) psicóloga e psicanalista