Nossa sociedade era inicialmente mítica
Nossa sociedade era inicialmente mítica baseada num poder transcendente, por sua vez, fator de sustentação a uma hierarquia de classes. Atualmente, vivemos numa sociedade onde reina a historicidade, onde a economia é preponderante e o poder do Estado uma obsessão. O movimento cultural que deu início a esta transformação foi a Revolução Francesa quando destruiu a estrutura social pacientemente edificada efetuando uma reestruturação baseada nos seguintes ideais e suas consequências: 1) quando proclamou todos os seres como livres e iguais, dizendo que nenhuma categoria social detinha, de direito, o poder, ela favoreceu a criação de classes sociais e instaurou a interminável luta pelo poder; 2) quando suprimiu a referência a um sagrado transcendente (a lei organizadora do mundo), ela tornou o mundo definitivamente profano criando um novo sagrad o povo encarnado na nação e o Estado; 3) quando acentuou o caminho da racionalidade em direção ao progresso, tendeu não apenas a concluir o desencanto do mundo, mas deu prioridade às ciências e às técnicas na elaboração de um mundo onde todos os desejos deverão se converter em necessidades.
A liberdade e a igualdade estão na origem da luta interminável pelo poder entre os homens. Uma sociedade assentada na ideia de igualdade é também e fundamentalmente uma sociedade de conflitos, vejamos o que nos diz Gauchet: “É opondo-se frontalmente que os homens reconhecem-se a si próprios. É no que os divide que eles encontram o segredo de sua identidade. A mesma lógica, segundo outras vias, determinará amanhã a conduta deles. A igualdade, criação permanente continuada, não significa: todos iguais, consequentemente de acordo; mas todos cada vez mais semelhantes, cada vez mais próximos, numa profunda discórdia.” Se todos são iguais, não existem razões para que uma opinião prevaleça sobre uma outra, não existe fundamento para uma autoridade legítima. Quando o rei foi assassinado nos acontecimentos marcantes da Revolução Francesa instaurou-se uma intensa competição pelo poder, instaurou-se também o desejo de morte dos irmãos, o desejo de tornar-se o onipotente e o onipresente. A igualdade leva a uma competição intensa, a similaridade de condições à vontade de diferenciação. Assim compreendemos a intensa rivalidade entre cidades próximas e similares; entre clubes futebolísticos semelhantes em desempenho e quadro desportivo; entre competidores com iguais chances de vitórias. As teorias “cor-de-rosas” sobre a igualdade precisam ser urgentemente completadas.
(*) Psicóloga e psicanalista