Durante quatro longos anos (1940 a 1944) Paris viveu sob a ocupação nazista e sofreu todos os horrores de uma guerra que nós, brasileiros, por mais informações que tenhamos conseguido, não sabemos dimensionar. Isso aconteceu durante a II Guerra Mundial e o famoso Hotel Ritz, sobrevivente incólume, aparentemente, durante todo este período teve também seus mártires e algozes para serem lembrados: Blanche Auzello, por exemplo – a bela e impulsiva esposa americana do diretor do Hotel Ritz. De ascendência judaica e alemã, morou em Paris durante a guerra com um passaporte falsificado e foi atraída contra a vontade para as redes secretas da resistência.
Blanche ocultou aviadores abatidos até poderem sair da cidade nos porões do hotel ou dentro de guarda-louças embutidos debaixo das escadas. Suas atividades eram vigiadas, mas seu encarceramento pela Gestapo só aconteceu em junho de 1944 e agosto chegara sem que uma palavra sequer fosse dita sobre seu destino, o que não era surpreendente. Até que um dia da terceira semana de agosto alguém na mesa telefônica do hotel recebeu uma ligação perturbadora. Um homem havia encontrado uma mulher descalça e cadavérica cambaleando pelas ruas da vizinhança, mal conseguindo se manter em pé. Ela dizia se chamar madame Auzello.
Nenhuma pessoa em Paris passou a guerra sem que um amigo ou parente tivesse sido preso, deportado ou fuzilado. As mulheres que passavam por esta situação de encarceramento e tortura e, no entanto, tinham sorte de sobreviver, costumavam voltar para casa desfiguradas por queimaduras de cigarro nos seios e mutilações sádicas... Nestes centros de tortura, e havia muitos deles em Paris, alguns com fornos enormes onde as pessoas eram queimadas lentamente começando pelos pés, por castigo e para o prazer dos guardas.
Blanche passou meses presa e quando cedeu sob o interrogatório, por algum milagre o oficial não quis executá-la. A Gestapo apenas abriu as portas da prisão. De alguma forma Blanche encontrou forças e saiu para as ruas de Paris. Enlouquecida, mas viva.
Quando se corre pessoalmente o risco de morrer, não se pode vivenciá-lo, pois isso equivaleria a criar um obstáculo à própria sobrevivência. Somente a recusa é psicologicamente possível: há quem só se tenha autorizado a sofrer pela perda de um dos seus depois de passados trinta ou quarenta anos, na eventualidade de um encontro com um militante ou um analista. Então consegue falar de si diante de alguém. A consequência é a dificuldade que ela passa a ter para estabelecer uma comunicação com os seres humanos: ela perde a esperança de um dia poder ser entendida.
(*) psicóloga e psicanalista ilceaborba@gmail.com