Desse lugar social imposto às mulheres durante tanto tempo, lugar que podemos situar como “fora do espaço social” ou ainda “no interior restrito do espaço doméstico”, podemos tecer considerações sobre o significado cultural do feminino que determina limites e proporciona facilitações aos papéis reservados às mulheres tanto antes quanto agora. No imaginário popular e na prática psicanalítica que envolve a escuta do inconsciente, encontramos mitos cuja decifração revela temores frente ao feminino como, por exemplo, na paixão mortífera de Salomé.
A análise desse mito está baseada na peça de Oscar Wilde e na ópera de Richard Strauss, cuja violência sexual exacerbada pela força dramática da orquestração e pelo tratamento inumano das vozes chocou seus contemporâneos.
A fundamentação histórica é conhecida: o profeta João Batista delata, nas suas pregações, Herodíades como depravada, assassina e incestuosa. Salomé, filha de Herodíades, ao escutar o profeta, é tomada por um súbito desejo mórbido por ele, chegando a expressar sua vontade de tocar-lhe os cabelos, o corpo e a boca, sendo, então, repelida e amaldiçoada por João Batista. Herodíades, que o detesta, convence Salomé a seduzir Herodes com a dança dos sete véus em troca da cabeça do profeta. Apesar do medo que sente por João Batista, Herodes aceita o pedido de Salomé e lhe apresenta a cabeça de João Batista numa bandeja de prata. Neste momento, Salomé é tomada de um êxtase e começa a beijar a cabeça ensanguentada do santo. O próprio Herodes fica perturbado e ordena a morte de Salomé. “Em Salomé revela-se em toda a sua nudez a perversão que é sempre mutilação e instalação do objeto parcial como objeto-fetiche adorado, bem como a negação da existência do outro.” (Enriquez)
A aceitação do homem faz de Herodíades uma frenética, mordaz e incestuosa e ainda estimuladora de crimes. Enojada de si mesma, de Herodes e de sua filha Salomé, que ela voluntariamente prostituíra a Herodes, além de estar atemorizada pela presença do profeta, só lhe resta dirigir-se cada vez mais ao crime. Já Salomé, corrompida pelo sangue materno, perde a cabeça pelo santo e pede sua cabeça! Este mito fala da transformação de uma união em incesto, do amor em orgia, do carinho em vontade de matar, do outro em objeto parcial, da santidade em excesso erótico, do marido em marionete e de um reino sólido em um reino minado. De acordo com este mito, a catástrofe faz viver o feminino, e a tempestade é o único elemento que convém a seu ser.
(*) psicóloga e psicanalista