Apesar dos ataques frequentes às uniões entre duas pessoas
Apesar dos ataques frequentes às uniões entre duas pessoas feitas até mesmo por regimes políticos, os casamentos resistem tão atrativos como nunca. O que se percebe são reinvenções que se chamuscam a superfície, não conseguem alterar a essência. Assim o compromisso de um casal não obedece mais à lei da indissolubilidade e as novas famílias se formam, se separam, tornam a se formar, a se separar, talvez indefinidamente.
Pode-se perceber neste rearranjo matrimonial uma total incompreensão das verdades subjacentes ao par homem/mulher. O casal se constitui como um vínculo trágico; ele nos faz compreender a duras penas que os outros existem, não como objetos possíveis de nossa satisfação, mas como sujeitos de seus desejos, em outras palavras, como tão suscetíveis de nos rejeitar quanto de nos amar, de manifestarem vontades contraditórias às nossas, de representarem perigos permanentes não apenas para nosso narcisismo, como também para nossa simples sobrevivência, e de serem, para nós, apesar de tudo isso, tão indispensáveis quanto o ar que respiramos. O outro pode representar para o sujeito o semelhante, o complementar, o identificatório, o adversário, o rival e até mesmo o inimigo cruel. Acreditar na possibilidade de encontrar pelo matrimonio a alma gêmea, no sentido de semelhança e completude, significa fundamentar esperanças e projetos sobre areias movediças, pois a aliança pode estar estabelecida fundamentalmente pela rivalidade e mal-entendidos. Não podemos esquecer a capacidade primária do homem de imaginar sobre o desconhecido, preenchendo então todas as lacunas que a fala, seja ela tanto do sujeito quanto do outro, produz.
Um segundo fator presente no vínculo do casal revela-se na característica humana de depender das identificações projetivas e introjetivas para construir uma subjetividade que lhe seja própria. Em outras palavras, se o outro nos assemelha, se nos ama e nos detesta ao mesmo tempo, isto significa que nós mesmos nos amamos e nos detestamos concomitantemente. Somos nosso próprio traidor, nosso próprio carrasco, nossa fada madrinha e nossa bruxa malvada. Somos em síntese ambivalentes frente a nós mesmos; a relação que tecemos com o nosso próprio corpo é uma relação de proximidade e de rejeição, de ternura e de terror. Somos seres de desconhecimentos, de lacunas e de transbordamentos. Trazemos em nós os traços de carinhos e de golpes de muitos outros que nos marcaram antes mesmo deste.
(*) Psicóloga e psicanalista