Parece incoerente pensar numa sabedoria que seja ilusão, já que não admitimos aos sábios a possibilidade de se iludirem, já que acreditamos que aquela é própria vida dos que se confundem, dos que não separam o real das fantasias e dos desejos insatisfeitos. Mas, no pensamento de La Rochefoucauld – “quem vive sem loucura não é tão sábio como acredita ser.” Para ele, a verdadeira sabedoria consiste em saber que a demência e a crueldade são inevitáveis.
Onde situar o carnaval? Já constatamos que Dionísio, enquanto divindade que simboliza o entusiasmo, os excessos, as orgias, a alegria em profusão, como também a libertação, a supressão das proibições e dos tabus, ou ainda a ruptura das inibições, das repressões, dos recalques, enquadra-se na essência do espírito carnavalesco. Sem dúvida, o carnaval na sua vertente de explosão de vida estaria simbolizado pela divindade que nasceu duas vezes – que quer dizer também dupla gestaçã nascimento, morte e renascimento. Só aquele que vivenciou a morte pode se entregar completamente à vida, porque superou o medo de morrer.
Dionísio simboliza as forças de dissolução da personalidade: a regressão para as formas caóticas e primordiais da vida que provocam as orgias; uma submersão da consciência no inconsciente. Ele é o deus que preside aos excessos provocados pela embriaguez, toda espécie de embriaguez, a que se apodera dos beberrões, a que arrebata as multidões arrastadas pela música e pela dança, até mesmo a da loucura, que ele inspira àqueles que não o honraram como convém. Dionísio oferece aos homens os dons da natureza, sobretudo os da vinha. Ele é o deus das formas inumeráveis, o criador-mor de ilusões, o autor de milagres.
Dionísio nos remete tanto à demência quanto à espiritualidade. Sua simbologia se mostra ambivalente porque a libertação metaforizada no símbolo pode ser espiritualizante ou materializante, fator evolutivo ou involutivo da personalidade, uma vez que simboliza em profundidade a energia vital tendendo a emergir de toda sujeição e de todo limite.
O culto de Dionísio na Grécia Antiga tem uma função de catarse, liberando o homem dos seus deveres cívicos; em Roma, transformou-se em festa licenciosa e nestes pontos reconhecemos o carnaval enquanto catarse e festa licenciosa. Dionísio também representa a crueldade extrema a que chegam seus adeptos no rito de orgia e também aí enquadramos o carnaval.