Depois de se entregar totalmente à ilusão dos prazeres absolutos, vividos orgiasticamente na onipotência do Eu e no aqui e agora dos sentidos, ajudados pela ingestão de substâncias geradoras de prazer, é chegada a hora do arrependimento, da penitência e do jejum. A cinza é, por excelência, um resídu aquilo que resta após a extinção do fogo e, portanto, antropocentricamente, o cadáver, resíduo do corpo depois que nele se extinguiu o fogo da vida.
Sob o ponto de vista espiritual, o valor da cinza é nulo já que resíduo; mostra-nos assim a nulidade da vida humana já que precária. Na Índia, os corpos dos iogues e dos sadhus são esfregados com cinzas como sinal de renúncia a toda vaidade terrena, a exemplo do corpo do Xiva asceta, ao passo que os ascetas cristãos às vezes misturam seus alimentos com cinzas. Realmente, o corpo acinzentado em razão da cinza que o cobre causa repulsa, e não desejo, representando um ataque frontal ao seu poder de despertar o desejo e atrair o outro num movimento de aproximação entre os humanos que antecede o sexual.
Não podemos nos esquecer, entretanto, que tudo aquilo que está associado à morte liga-se, como ela, ao simbolismo do eterno retorno, que explica o costume, mantido durante tanto tempo nos mosteiros cristãos, de se estender os moribundos no chão recoberto por uma cinza disposta em forma de cruz, lembrando que a cruz é um símbolo universal da alternância morte/vida, que dá sentido ao fato.
Lembrando o recente texto do Arnaldo Jabor onde ele mostra sua incompreensão da experiência anualmente repetida pelos brasileiros de se entregarem ao carnaval: “um povo sofrido, roubado, explorado... sem perspectiva de vida... de uma hora para outra explode numa alegria sem motivo... sem limites e sem pudor.” Eu diria que é por isso mesmo que existe o carnaval, para dar oportunidade de se entregar de corpo inteiro a uma experiência totalmente contrária ao seu dia a dia – uma liberação social à vida da fantasia, da brincadeira, da encenação pública de histórias infantis onde aparecem “rei e rainha”... Pelo menos, naqueles três dias, o sonho está liberado para ser realidade e cada um vive seu próprio sonho realizado – ser marinheiro, mulher, fada, nobreza ou qualquer outro personagem, sabendo que é apenas um papel e que na Quarta-feira de Cinzas ele retomará sua própria personalidade e trabalho. Essa é uma magia de oposição onde, se você quer chamar a chuva, você espalha cinzas do alto de uma montanha. Na liturgia cristã, a Quarta-feira de Cinzas remete às palavras de Abraã “Eu me atrevo a falar ao meu Senhor, eu que sou poeira e cinza.”