As cenas iniciais mostram jovens mulheres que passeiam de barco pelos canais de Amsterdam na Holanda. Mas, diferentemente do esperado, este grupo tem expressão tensa, cabisbaixa, angustiada e incomodada. Não se trata de um grupo turístico de jovens em alegre excursão pelas águas permissíveis de um país que defende e legaliza o consumo de ervas e o gerenciamento autônomo do próprio corpo em suas demandas de prazer sexual. Pelos pensamentos expressos, tomamos conhecimento tratar-se de jovens saídas de intervenção abortiva. A sociedade civil é liberal. Não existe proibição social, apenas a de foro íntimo. Assim este grupo significativo de jovens que passeiam de barco não se diverte. Nessa situação tensa, uma delas, que se destaca pela sua beleza introspectiva, acaba conhecendo um jovem iraniano que se tornará seu companheiro e pai de seus filhos.
O roteiro gira em torno de duas francesas: Suzanne e Pomme, unidas pelo mesmo desafio do feminismo. Suzanne, mais recatada, já mãe de duas crianças de um relacionamento com um homem casado, do qual se torna viúva após seu suicídio. Pomme, jovem e rebelde compositora e artista em obra que busca compreensão e divulgação dos desafios femininos. Durante 10 anos, as duas se correspondem através de cartões postais.
Pomme, mais jovem, tem desejos e ímpetos mais radicais, levando um estilo de vida sempre desafiador, até mesmo pela sua inclinação artística. Já Suzanne é mais introspectiva e cuidadosa, afeita à maternidade e menos combativa quanto aos papéis sociais preestabelecidos às mulheres da época. No entanto, cada uma luta à sua maneira quando as imposições do patriarcado vão contra a felicidade delas.
Essa abordagem humanista, na qual as mulheres não são 8 ou 80, é hoje posta como progressiva e necessária (embora a complexidade e verossimilhança sejam regra quando falamos de histórias sobre homens), e o longa se coloca como uma referência salutar de como fazer isso. Isso e os desafios enfrentados por Pomme e Suzanne mantêm o filme mais atual que nunca.
Como Pomme é mais atirada, experimenta situações inusitadas, como por exemplo casar com um iraniano, mudar de país, viver na sociedade restrita da religião do seu companheiro até descobrir nele os mesmos valores que inicialmente parecesse não ter. As bandeiras do feminismo são levantadas: aborto seguro, controle pela escolha da mulher de quando e se terão filhos, a divisão de tarefas com o parceiro ou os ganhos na vida profissional. E nos fazem refletir ainda sobre outro detalhe: o quanto as mulheres ainda precisam saber sobre o feminismo para lutar verdadeiramente.
Ilcea Borba Marquez
Psicóloga e psicanalista
E-mail: ilceaborba@gmail.com