Engana-se aquele que pensa ser o homem capaz de perceber e representar psiquicamente de forma objetiva tal qual um cientista diante do seu objeto de estudo. O contato com a realidade externa se dá a partir do que já existe como representação psíquica no mundo interno do sujeito. Esta realidade psíquica é o mundo das fantasias carregadas de desejo. Mesmo sabendo que o aparelho psíquico nada mais é do que um aparelho de memória, esta não é uma simples recepção e retenção de imagens, segundo uma concepção estritamente empírica. A memória se dá através dos sistemas mnésicos que desmultiplica a recordação em diversas séries associativas designadas pelo conceito de traço mnésico – menos uma impressão fraca que permanece numa relação de semelhança com o objeto do que um sinal sempre coordenado com outros e que não está ligado a esta ou àquela qualidade sensorial.
Originalmente, Freud procurava, juntamente com seus clientes, a cena traumática realmente vivida ligada a um determinado sintoma atual. Como exemplo, podemos lembrar que a origem do estrabismo convergente de uma das famosas clientes do início do movimento psicanalítico estava no exato momento em que à cabeceira do pai agonizante desejou ver as horas no relógio, sendo impedida pelas lágrimas que lutava para esconder. O abandono ou pelo menos a limitação da Teoria da Sedução (o papel patogênico dos traumatismos infantis reais) destas primeiras conceitualizações levou à conclusão que “os fantasmas (fantasias) possuem uma realidade psíquica oposta à realidade material, mas no mundo das neuroses é a realidade psíquica que desempenha o papel dominante”.
Assim há um predomínio da realidade psíquica na vida dos indivíduos. Os processos inconscientes, plenos de desejos realizados, não levam em conta a realidade exterior e a substituem por uma realidade psíquica, que deve, no entanto, contar com a realidade externa para a própria preservação. Em determinadas circunstâncias, quando há um comprometimento da unidade egoica, o sujeito submete a percepção (ou vários aspectos de percepção) a um forte contrainvestimento, nascendo uma nova realidade, que podemos dizer delirante – produto de um ódio direcionado tanto à realidade externa quanto interna e de uma luta contra a tomada de consciência. Por isso é comum a facilidade com que alguns conseguem negar uma culpa provada e comprovada por tantos, em situações até mesmo jurídicas na sua mais alta corte.
(*) Psicóloga e psicanalista