Aldir Blanc, se ainda estivesse aqui, faria 78 anos neste setembro de 2024. Pena que já se foi há quatro anos. O tempo não faz curva e nem anda em círculos, razão pela qual ocorrem desencontros imperdoáveis. E é de um desses desencontros que trata esta crônica.
O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles, lançado recentemente no festival de Veneza, homônimo do livro escrito por Marcelo Rubens Paiva, que, além de autor, é personagem testemunha da história que traz sua mãe, Eunice, no protagonismo de uma tragédia familiar e brasileira.
“A cena que filmavam: num almoço, Eunice Paiva, ciente de que mataram o marido, Rubens Paiva, anuncia aos filhos que se mudariam para São Paulo. O menino Marcelo, de 11 anos, era eu ali sentado. Minhas irmãs adolescentes Veroca, Eliana e Nalu se revoltaram com a mudança repentina. Ali, meu mundo desabou, em 1971, e naquele dia, 50 anos depois. Revi minha mãe. Revivi...”. Em outro trecho: “É um filme sobre uma família atropelada pela insensatez das contradições políticas, da intolerância e violência. Como tantas famílias foram atropeladas pelo ódio e terror. Aconteceu, continua acontecendo, não deveria mais acontecer. Por isso, ele foi feito. Para isso”. Marcelo Rubens Paiva – Folha de SP, 31/8/24.
“As pessoas que se vão normalmente são enaltecidas, mas Eunice, minha mãe, foi mesmo uma guerreira. Ela era apaixonada por meu pai e, sofrendo com a viuvez aos 40 anos e tendo sido presa, manteve os pés no chão. Em sua luta, nunca perdeu a doçura nem deixou que nada atrapalhasse a relação com os filhos. Ao contrário: isso nos aproximou... Carrego sua sabedoria e postura como exemplos. No dia em que FHC assinou a lei de reconhecimento dos desaparecidos da ditadura, ela abraçou um general... Mais do que nunca se faz necessário mergulhar na memória de Eunice. Ela morreu há seis anos, e a saudade ainda machuca. Mas, ao cutucar o passado, renovo minhas esperanças no que está por vir”. Marcelo Rubens Paiva – VEJA, 31/8/24.
Trago agora, lá do início do texto, o Aldir letrista do Hino da Anistia, “O Bêbado e o Equilibrista”, que se consagrou pela música de João Bosco, com seus acordes equilibrando o bêbado em sua caminhada trôpega de quatro minutos no ziguezague entre a primeira e sexta corda do seu encantado violão, e a garganta de Elis, cantando a volta do irmão do Henfil. Na maravilhosa letra dessa canção imortal, Blanc, em sua genialidade e sensibilidade, evoca as figuras de Maria, esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, e Clarice, esposa de Vladimir Herzog, ambos torturados e mortos pela ditadura. “Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”. Ao dizer que esta crônica trataria de desencontros imperdoáveis, falo do de Aldir e “Ainda Estou Aqui”, que nos revela Eunice, esposa de Rubens Paiva, também torturado e morto pela ditadura. Creio que Aldir, se ainda estivesse aqui, reescreveria um verso e o atualizaria assim: Choram Marias, Clarices e Eunices no solo do Brasil. Quem sabe João Bosco, autorizado em testamento literário por Aldir, passe a cantar Eunice também junto às Marias e Clarices. Seria um inestimável reparo ao imperdoável desencontro.
PS: não assisti ainda ao filme, mas já me apaixonei por ele e por Eunice.