ARTICULISTAS

Kafkiano de novo

Existe uma meta, mas não há caminho; o que chamamos caminho não passa de hesitação...

Luiz Cláudio dos Reis Campos
lucrc@terra.com.br
Publicado em 19/07/2016 às 19:24Atualizado em 16/12/2022 às 18:03
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"Existe uma meta, mas não há caminho; o que chamamos caminho não passa de hesitação."

“De um certo ponto adiante não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado.”

Algo invisível dificultava meu deslocamento pela casa. Anoiteceu. Acendi as luzes que lampejavam como pisca- pisca até minguarem. Fui parar no teto como um réptil. Rastejava com destreza e constatei que lá não seria incomodado. Minha permanência de cabeça pra baixo dava uma sensação de segurança, em um território inalcançável por essa Força. A fome chegou e chamou-me à realidade. Era o impasse que precisava para me situar: ou tudo era uma questão a ser resolvida comigo mesmo ou se a batalha era com um inimigo externo que se alojou em minha casa vindo não sei de onde e com qual propósito? A fome continuava. Evidência de que vivia tudo aquilo. Habitava o teto e rastejava como se fossem virtudes adquiridas pela impossibilidade de ser diferente, ou seja, ser normal em meu lar. Sabia que tinha de enfrentar o desconhecido, o inimaginável e intangível. Estava faminto. Eis que me vi réptil. Dei à língua nova função, um movimento elástico para abocanhar os insetos e aracnídeos ao alcance. Senti a dor e a humilhação quando lhe falta o mais básico dos alimentos. Não há mancha mais nefasta na história da humanidade, a de não sanar a fome do Mundo. Em aluvião apareceram incontáveis vaga-lumes a ofertar-me um clarão indescritível. Auxiliei-me daquela centelha e cheguei ao teto da cozinha. Rendido pelo cansaço e debilitado sabia que não podia baixar guarda à Força que estranhamente resolveu se apoderar de minha casa, tornar-me refém, abalar minhas convicções e subjugar-me como um animal rastejante.

Percebi que amanhecia ao ver o raio azul escuro refratando no vidro fosco da janela sobre a pia. Prostrei espatifando no chão da cozinha em queda livre do teto.

Recuperei os sentidos pelo sacolejo de minha secretária que me encontrou desacordado na cozinha. Olhei para o teto e não encontrei sinal de minhas andanças. O sinteco reluzia. Estranhei. Sem qualquer vestígio, como faria alguém acreditar-me ao narrar o ocorrido? Ou teria sido alucinação? Volto ao cotidiano portando muleta e tipoia. Era dia de eleição. Precisava votar. Ofereceram uma ambulância. Agradeci. Preferi ir caminhando de cabeça pra cima.

(*) Engenheiro lucrc@terra.com.br

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