Pegou aleatoriamente a peça que se situava entre tantos objetos. Soprou o pó que...
Pegou aleatoriamente a peça que se situava entre tantos objetos. Soprou o pó que revestia e empanava o conteúdo. Abriu com cuidado e preocupação para que não trincasse, porque, com o tempo, ficou muito frágil e seco. Ateve-se a debruçar em cada detalhe. Da forma geométrica, do volume, da área superficial, da densidade, enfim, de tudo que se apresentava naquele importante instrumento que, durante anos e anos, permanecia intocável. Leu o seguinte bilhete que viu junto ao objet uma obra inacabada não pode e nem deve ser desprezada, acima de tudo é maravilhoso observá-la ao ponto final de sua execução, até onde se chegou, posteriormente buscar os motivos de não estar acabada. Chamou-lhe especial atenção essa reflexão e pôde perceber que era de fato importante saber, sim, por que o desfecho de tanta coisa fica em aberto. Em determinadas situações é voluntário, em outras, o autor se finda antes de findar a obra. Diariamente, imperceptivelmente, deixamos muitas coisas inacabadas. Quando se deixa de dizer algo, quando se diz menos do que devia, quando se ignora quem atenção merecia. Quase tudo é inacabado, porque finitos somos e assim perceberemos quando o “memento mori” nos avistar e alertar: lembre-se de que você é mortal. É como diz Pascal Mercier em sua obra “Trem Noturno para Lisboa”: “se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com todo o resto?”. Não há retorno, nem prazo para o resto, tanto ao que não se iniciou, nem com o que não conseguimos concluir. Voltando ao objeto empoeirado e amarfanhado, tratava-se do livro “Lições de Abismo”, que fora encontrado em meio a tantos outros utilitários não mais úteis no dia de hoje. Ao conseguir bater todo o pó do livro, pôs-se a folheá-lo, leu o nome do autor, que é Gustavo Corção. Ficou extremamente impressionado porque o havia lido há mais de 30 anos e nunca mais se deparou com um exemplar dessa obra. Gustavo se descobre com leucemia e imerge nas profundezas do sentido da vida. Como a obra é inacabada, assim cada um que a lê busca o seu próprio sentido. Seu desfecho, seu final. O título, “Lições de Abismo”, inspira-se na obra de Júlio Verne, “Viagem ao Centro da Terra”. A expedição necessitava de treinamento de abismos, simulações para poder enfrentar os enormes abismos entre a superfície e o centro da Terra.