Dias atrás dei de querer animar-me com seres vivos em prosa imaginária e abstrata, posto não serem humanos. Pensei estabelecer diálogo com alguns que pudessem esclarecer dúvidas que sempre tive, desde mais jovem, até então insanáveis pelo fato de não ousar uma conversa franca e pontual. Sabia que dava início a uma viagem fabulosa, cujos caminhos e encontros ficariam ao encargo da minha capacidade de deixar fluir os devaneios que às vezes me acometem. Tomei a decisão. Era hora de enfrentar o incerto, o inesperado, o súbito, o fantástico, o inusitado, o imprevisto. Comecei pela minhoca das profundezas das terras do meu quintal. Perguntei-lhe se sabia como ela era classificada na cadeia alimentar e do papel que representava para nós. Disse-me que não e que não acreditava ser possível nossa conversa. “Acho que você me tem na sua cabeça, por isto imagina que estamos de fato dialogando”, reafirmou-me. Não, retruquei, estamos de fato nos falando e você logo terá esta certeza. Percebi sua inquietude e seus movimentos sinuosos quando pronunciei a palavra “sábia”. Vi que associou à palavra sabiá. Daí arrematei: “sábia minhoca, você sabe que o sabiá sabe saboreá-la, sabiamente. Não se aborreça, deve se lembrar de que iniciei nosso papo perguntando-lhe se sabia sobre cadeia alimentar. Então, você come terra e o sabiá come a terra que você come”. Disse-me: “não como terra, paspalho, como plantas, folhas e animais em decomposição no solo, os húmus. Também faço cavidades importantes no subsolo que ajudam a respiração de raízes de plantas, verduras e tubérculos que vocês consomem. Está , então? Minhoca não come terra”. Para nós, brasileiros, o sabiá é motivo de inspiração de grandes poetas, entre eles Gonçalves Dias e Chico Buarque, autores de canções de exílio que falam da saudade, do desejo de volta e do amor pelo Brasil. De agora em diante posso colocar minhocas na cabeça, sei quando podem e devem permanecer. Quando não fizerem sentido é hora de chamar: “sabiá fugiu pro terreiro, foi cantar lá no abacateiro... vem cá sabiá, vem cá”. Parafraseando Guimarães Rosa: a vida é mutirão de todos; minhocas, sabiás, cobras e lagartos, raposas, lobos, homens, peixes, tubarões, lambaris, beija-flores, gatos, ratos, pavões e toda a arca de Noé..., junto com Babel!