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Da Inconstitucionalidade da Exclusão do Cônjuge da Sucessão no Regime de Separação Obrigatória

Marcos Bilharinho
Publicado em 28/10/2025 às 18:36
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O presente artigo trata da análise da inconstitucionalidade dessa exclusão contida no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil, que dispõe:

Da Inconstitucionalidade

O Código Civil vigente, na disposição contida no inciso I, do artigo 1.829, veda a participação do cônjuge ou do companheiro casado ou unido pelo regime da separação obrigatória de bens na sucessão dos bens deixados pelo falecido, ao dispor:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;” (Grifo nosso)

(Código Civil, 1.829, I)

Entretanto, referido disposição legal é inconstitucional, já que contraria, frontalmente, o disposto nos artigos 1º, III; 3º, IV; 5º, I e X; 226, § 3º; e 230, caput, da Constituição Federal, que determinam a observância, dentre outros, dos princípios da: a) dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III); b) promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, 3º, IV); c) igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (CF, 5º, I); d) inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem e da dignidade das pessoas, especialmente as idosas (CF, 5º, X, e 230, Caput); e, e) proteção das entidades familiares, inclusive mediante união estável (CF, 226, § 3º);

Ou seja, referida pretensão de exclusão constitui-se em evidente e inadmissível discriminação em relação aos demais herdeiros e aos cônjuges/companheiros que se unam sobre outro regime de bens, caracterizando-se, ainda, como desrespeito à proteção à família e à dignidade da pessoa humana. Negar ao cônjuge/companheiro, casado ou unido pelo regime de separação obrigatória de bens, o direito à herança compromete sua dignidade.

O tratamento desigual entre as pessoas é absolutamente inconstitucional, sendo assim, um cônjuge/companheiro não pode ser discriminado em seus direitos em relação aos demais cônjuges/companheiros, notadamente em relação àqueles que têm a faculdade de pactuarem espontaneamente a separação voluntária dos bens.

Ademais, a desequiparação só pode ocorrer para proteger a pessoa mais frágil na relação e não para preservar direito de terceiros estranhos a ela, no caso, os herdeiros. Mesmo porque, essa discriminação em nada protege o idoso, já que ele pode, inclusive, ser prejudicado por ela caso o cônjuge/companheiro mais novo faleça primeiro.

Se a restrição ao casamento do idoso tinha, pelo menos teoricamente, a intenção de protegê-lo, a norma que exclui os cônjuges e companheiros maiores de setenta anos de suas recíprocas sucessões nem isso atende, porque, como já dito, a restrição à sucessão só protege os herdeiros, mas, contudo, deixaria cônjuge/companheiro o idoso, na hipótese de falecer depois do mais novo, também sem direito à herança. Isto é, na realidade, apenas o idoso seria prejudicado.

Ou seja, essa desequiparação não protege o idoso, mas sim seus herdeiros, o que não é legítimo nem constitucionalmente permitido.

A lei, nessa parte, além de desumanizar, é contraditória, já que permite a sucessão quando os cônjuges têm a facilidade de optar por qualquer um dos regimes de bens, mas nega a herança quando o regime é obrigatório. Se é admitida a sucessão quando os cônjuges/companheiros podem escolher o regime, muito mais justo o será quando não se dispõe desse arbítrio. E se o casamento ou a união for entre dois maiores de 70? Quem seria, em tese, “protegido”? Evidentemente, nenhuma delas, mas, apenas, seus respectivos sucessores.

Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, em casos análogos, já se posicionou contra outras espécies de discriminações e pacificou a questão com as decisões proferidas nos Processos ARE 1.309.642 (Tema 1236) e RE 878.694. Como ressaltado na decisão, a legislação atual conferiu mais autonomia ao interditado do que ao idoso.

Verifica-se, pois, a total inconstitucionalidade da tentativa de exclusão dos cônjuges/companheiros, unidos pelo regime da separação obrigatória de bens, da sucessão hereditária recíproca, prevista no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil.

Da Revogação do Inciso I, do Art. 1.829, do CC – Do Estatuto da Pessoa Idosa

E mesmo que a referida norma não fosse inconstitucional, o que se admite apenas para argumentar e por excesso de cautela, nos termos do previsto no § 1º, do artigo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, dentre outras hipóteses, a lei posterior revoga a anterior quando for com ela incompatível:

“Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” (Grifos nossos)

(Decreto-Lei 4.657/1942, Artigo 2º, § 1º)

A Lei 10.741/2003, denominada como Estatuto da Pessoa Idosa, em seus artigos 2º, 3º e 4º, revogou, por incompatibilidade, a discriminação contida no mencionado dispositivo inconstitucional ao estabelecer que a pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, que faz jus à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, não podendo, evidentemente, ser submetida a quaisquer tipos de discriminação, in verbis:  

“Art. 2º A pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)

Art. 4º Nenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)” (Grifos nossos)

Isto é, se a pessoa idosa, com fundamento na Constituição e na Lei 10.741/2003, goza de todos os direitos, não há como lhe negar a prerrogativa de herdar e de ter o seu cônjuge/companheiro o mesmo direito.

Mesmo porque, o casamento ou a união estável podem ser celebrados ou estabelecidos por um casal com idade igual ou superior a 70 anos. Porém, de acordo com a indigitada norma em análise (CC, 1.829, I), nenhum deles estaria habilitado a suceder ao outro, o que é constitucional e legalmente inadmissível.

Em consequência, também deve ser reconhecida e declarada a revogação, por incompatibilidade, da tentativa de discriminação contra os cônjuges/companheiros, unidos pelo regime da separação obrigatória de bens, da sucessão hereditária, prevista no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil.

Da Natureza Jurídica do Pacto Antenupcial

Referida norma também é completamente desarmônica e incongruente com os demais dispositivos contidos no próprio Código Civil, visto que, nos termos do contido no artigo 426, do Código Civil, é expressamente vedado que a herança de pessoa viva seja objeto de contrato.

“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.”

(Código Civil, 426)

Isto é, se a herança da pessoa viva não pode ser objeto de contrato, é inadmissível que o pacto nupcial tenha efeitos sobre o direito de o indivíduo ser herdeiro ou sucessor.

Ou seja, o estabelecido no pacto nupcial ou no contrato de união estável não pode ter repercussão na sucessão, conforme disposto no referido artigo 426, da CC.

Inclusive, o artigo 1.845, do Código Civil, ao estabelecer os herdeiros necessários, não faz nenhuma distinção e também não criou a figura do cônjuge/companheiro de segunda categoria ao disciplinar:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.” (Grifo nosso) (CC, 1.845)

Também em cotejo com o artigo 1.845, do CC, verifica-se a ocorrência de antinomia entre dispositivos endógenos do próprio Código Civil, devendo, assim, prevalecer os que se encontram despidos do vezo discriminatório contido no inciso I, do artigo 1.829, do CC.

O Superior Tribunal de Justiça também entende que o regime de casamento não tem efeitos post mortem, já que seus reflexos se limitam a disciplinar a questão patrimonial durante a vida do casal, mas não depois do falecimento (STJ - Ac. 3 a T., REsp. 1.472.945/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 20/10/2015, DJe 29/10/2015) e (STJ - Ac. 3 a T., REsp. 1.472.945/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23.10.14, DJe 19/11/2014).

Sendo assim, a natureza jurídica contratual do pacto antenupcial, a teor do artigo 426, c/c o artigo 1.845, do Código Civil, impede que o regime de bens do casal tenha efeitos no direito sucessório, o que também se argui, para todos os efeitos.

Do Princípio da Boa-Fé Objetiva – Presunção

A exclusão da sucessão prevista no mencionado no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil, fere, também, o princípio da boa-fé, visto que, “a boa-fé se presume, a má-fé prova-se”.

No entanto, referido dispositivo legal pressupõe que todo o casamento com maiores de 60 e, agora, de 70 anos, seria derivado da má-fé de um dos consortes, o que contraria as normas constitucionais e legais que são em sentido oposto.

Na prática jurídica, isso significa que a boa-fé é o ponto de partida, e qualquer afirmação contrária precisa ser fundamentada e provada por quem a alega.

Isto é, referida norma discriminatória não pode ser admitida, já que também afronta o princípio da presunção de existência de boa-fé.

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Marcos Bilharinho

Advogado e escritor

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